sábado, 19 de agosto de 2017

Leitura: Alguma poesia (1930) - Carlos Drummond de Andrade




Refeição Cultural

"O SOBREVIVENTE

                          A Cyro dos Anjos

Impossível compor um poema a essa altura 
                          [da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja -
                          [de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as
                             [necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
                Um sábio declarou a O Jornal que ainda
                falta muito para atingirmos um nível
                razoável de cultura. Mas até lá, felizmente,
                estarei morto.
Os homens não melhoraram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heroicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um
                               [segundo dilúvio.
(Desconfio que escrevi um poema.)"


Ler Drummond é um ato de resistência ao embrutecimento que a realidade nos impõe. No primeiro semestre deste ano, li compulsivamente em minhas parcas horas de folga das lutas pela entidade de saúde que administro em nome dos associados.

Meu coração está empedernido pelo golpe de Estado que vem destruindo meu querido País e os direitos do povo brasileiro. 

Neste ano já li ou terminei a leitura de mais de trinta livros, dentre eles três de Hemingway; li Goethe, li Chico Buarque, li Tolstói, li vários livros de ensaios ou com algum viés político. Também li obras de Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Paulo Leminski.

Apesar de decidir não ler tanta literatura neste semestre por causa do que tenho pela frente, acaba que não damos conta de largar completamente "Alguma poesia" ou algum romance ou ensaio.

Li nesta manhã de sábado, o primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, Alguma poesia, de 1930. É uma obra fantástica, atemporal. Eu realmente recomendo a leitura aos meus colegas bancários da ativa e aposentados.

Deixo aqui dois poemas do livro, o primeiro - acima - e Explicação, a seguir, que poderiam ter sido escritos ontem. Deixo também um link de uma breve análise que fiz do livro anos atrás (AQUI).

Drummond é o poeta das coisas presentes, da materialidade das coisas em seu tempo, e mesmo assim, é atemporal, porque sua materialidade é sobre as coisas da vida, dos homens e das sociedades.

Abraços aos leitores amig@s,

William


"EXPLICAÇÃO

Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem a 
                              [sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha
                              [de flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha 
                              [vida e trabalhos
é que faço meu verso E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre...
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai
                              [dar uma cambalhota,
mas não é para o público, é para mim mesmo 
                              [essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país,
                              [esta sombra mole, preguiçosa.
Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola...
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de
                            [qualquer córrego vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.

E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era...
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices, a maior é suspirar 
                                        [pela Europa.
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem 
                                        [caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam 
                                        [a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua 
                                       [de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma 
                                       [canalha só,
lê o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido 
                                      [que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?"

(Carlos Drummond de Andrade)

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