domingo, 29 de janeiro de 2017

Leitura: Morte e vida severina e outros poemas (1953/55) - João Cabral de Melo Neto





Refeição Cultural

"- Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
Saltou para dentro da vida
ao dar seu primeiro grito;
e estais aí conversando;
pois sabei que ele é nascido..."

(Morte e vida severina)


Pois é amig@s leitores, mal sabia a mulher que chama ao compadre que ele estava conversando com o Severino, mais um severino retirante recém-chegado do sertão, que se questionava sobre viver ou não viver mais a vida severina, quando a própria vida responde a tão difícil questão...

Neste domingo, reli este auto de João Cabral de Melo Neto. Também tive o prazer de conhecer mais três obras dele da mesma década: O Rio (1953), Paisagens com figuras (1954/55) e Uma faca só lâmina (1955). 

Para ver comentário de leitura que fiz em 2014, clique AQUI

O livro foi presente do jovem sindicalista Alex, de Arapoti - PR; estávamos em curso de formação da Contraf-CUT, quando eu era o responsável por aquela missão revolucionária de educar e formar trabalhadores para as lutas sindicais e sociais. 

Foram tempos que me marcaram profundamente, pela convivência com os amigos e amigas do Dieese, com a equipe maravilhosa de dirigentes e funcionários da Confederação, à época liderada pelo grande amigo e companheiro Carlos Cordeiro, e marcante pelo contato formativo com centenas de dirigentes sindicais e assessores de entidades de todo o país.

Amig@s, a leitura desses poemas de João Cabral são estimulantes para aqueles e aquelas que não se acostumaram com a injustiça, a iniquidade e com a miséria social. Esses poemas dão sequência à lógica de La Boétie e seu Discurso da Servidão Voluntária (ler comentário AQUI). 

Nós não temos que aceitar como hábito a desgraça e a injustiça social de um mundo para poucos em detrimento de milhares, milhões e bilhões de pessoas em situação de miséria. Isso não é correto. E o ser humano é livre para se rebelar no instante que quiser.

Para seguir vivendo, só vale a pena se for para não aceitar as coisas erradas como estamos vendo. Oito pessoas terem a metade da riqueza do planeta; mais algumas terem a metade da riqueza do Brasil. Isso é iníquo. Isso não é "natural", normal. Isso é político! Isso não é "técnico".

Enfim, isso é uma questão IDEOLÓGICA! De classe!


"Na estrada da ribeira
até o mar ancho vou.
Lado a lado com gente,
no meu andar sem rumor.
Não é estrada curta,
mas é a estrada melhor,
porque na companhia
de gente é que sempre vou.
Sou viajante calado,
para ouvir histórias bom,
a quem podeis falar
sem que eu tente me interpor;
junto de quem podeis
pensar alto, falar só,
Sempre em qualquer viagem
o rio é o companheiro melhor..."

(O Rio)


Vamos lado a lado, o povo deve se rebelar contra os poucos que estão aí, tiranos instalados na estrutura estatal e na máquina totalitária de comunicação empresarial.

Abraços fraternos e de esperança com atitudes diárias para mudar o estado das coisas iníquas de nosso mundo.

William

sábado, 28 de janeiro de 2017

Leitura: Discurso da Servidão Voluntária (s. XVI) - Étienne de La Boétie





Refeição Cultural

"E quando vemos, não cem, não mil homens, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens se absterem de atacar aquele que trata a todos como servos e escravos, que nome poderemos dar a isso? Será covardia? Todos os vícios têm naturalmente um limite, além do qual podem passar..." (La Boétie)


Ganhei de presente do amigo Sandro Sedrez, companheiro de lutas em defesa da Cassi, autogestão baseada na Atenção Primária e Estratégia Saúde da Família, este pequeno livro de Étienne de La Boétie (1530-63) - Discurso da Servidão Voluntária -, obra marcante e de grande influência no mundo da política desde quando começou a circular de forma não oficial já no século XVI, a partir dos anos 1550.

Eu tenho grandes lacunas culturais e literárias. Nunca neguei isso porque somos o resultado do percurso de nossas vidas, e a minha foi de trabalho braçal na infância e adolescência até virar bancário e tive pouca oportunidade de leitura durante vários anos centrais da formação de um jovem. Mesmo assim, sempre corri atrás das leituras nas poucas horas livres que pude ter ao longo da vida subproletária e proletária.

As leituras que faço na minha vida têm origens variadas. Tenho centenas de livros que sonho ler e estudar. Quando dá, pego eles para ler. Tem as leituras que vão sendo obrigatórias por razões diversas. E tem as leituras que aparecem pela convivência em sociedade. Agora, conheço mais uma obra clássica, que influenciou a forma de pensar das sociedades contemporâneas ocidentais.

Eu comparo esta obra em importância e influência a outras como Utopia (1516), do inglês Thomas More (ler comentário AQUI) e O Príncipe (1513), do italiano Maquiavel (ler comentário AQUI). Li ambas em 2011.

Não poderia ter lido obra mais condizente com a realidade política de nosso País do que esta sobre a servidão voluntária, pois sofremos um golpe de Estado em 2016 e estamos sob um regime de exceção, com o poder na mão de uma camarilha de corruptos que tomaram conta das instituições estatais do Estado, em conluio com empresários da comunicação e parcelas de capitalistas nacionais e imperialistas norte-americanos.

Das teses apresentadas por La Boétie justificando os porquês das pessoas se submeterem à servidão voluntária, acrescento uma de conceito mais recente em relação ao século XVI: a ideologia.

Gostaria que todas as pessoas envolvidas com os movimentos sociais e lideranças populares lessem esse pequeno texto, que é possível ler em um dia, para reavivarem suas naturezas e sentirem o instinto de liberdade que nos baliza e norteia e, assim, começarem a organizar a resistência e reversão da servidão voluntária aos golpistas tiranos, que destroem tudo em nosso País a cada semana que passa, desde maio de 2016.

Apresento abaixo alguns excertos do livro e logo depois, uma síntese que está na enciclopédia livre (Wikipédia) e está muito boa.

William


Excertos

- "Eu não lhe pediria tão vivamente para recuperar a liberdade se lhe custasse alguma coisa. Não existe nada mais caro para o homem do que readquirir o seu direito natural e, por assim dizer, de animal voltar a ser homem..."


- "Para conseguir o bem que deseja, o homem ousado não teme nenhum perigo, o homem prudente não regateia nenhum esforço. Só os covardes e os preguiçosos não sabem suportar o mal nem recuperar o bem. Limitam-se a desejá-lo e a energia de sua pretensão lhes é tirada por sua própria covardia..."


- "É incrível ver o povo, quando é submetido, cai de repente num esquecimento tão profundo de sua liberdade, que não consegue despertar para reconquistá-la. Serve tão bem e de tão bom grado que se diria, ao vê-lo, que não só perdeu a liberdade, mas ganhou a servidão..."


- "Se todas as coisas se tornam naturais para o homem quando se acostuma a elas, só permanece em sua natureza aquele que deseja apenas as coisas simples e não alteradas. Assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito..."


- "Os homens livres, ao contrário, disputam a preferência em lutar pelo bem comum, porque associam a ele seu interesse particular: todos esperam ter sua parte no mal da derrota ou no bem da vitória. Mas os homens submissos, desprovidos de coragem guerreira, perdem também a vivacidade em todas as outras coisas, têm o coração tão fraco e mole que não são capazes de qualquer grande ação. Os tiranos sabem muito bem disso. Por isso, fazem o possível para torná-los ainda mais fracos e covardes."

Bibliografia:

LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da Servidão Voluntária. Texto integral. Edição bilíngue. Tradução: Casemiro Linarth. Martin Claret.


----------------------------------------------------------------------

Wikipédia 

Étienne de La Boétie (Sarlat, 1 de novembro de 1530 - Germignan, 18 de agosto de 1563) foi um humanista e filósofo francês, contemporâneo e amigo de Michel de Montaigne (este que em seu ensaio "Sobre a Amizade" faz uma homenagem a la Boétie). Poucos anos antes de morrer, aos 32 anos, Étienne de La Boétie deixou em testamento seus escritos a Montaigne, o qual, mais tarde, destacou os méritos nos Ensaios e em várias cartas, apontando este autor como um importante homem daquele século.

Traduções de obras clássicas greco-romanas eram comuns entre os studia humanitates, por isso entre os trabalhos de Étienne de La Boétie estão as traduções do grego para o francês de obras de Xenofonte e Plutarco - Étienne escreveu também algumas obras originais, a sua obra mais famosa é seu "Discurso da Servidão voluntária", escrita no século XVI, depois da derrota do povo francês contra o exército e fiscais do rei, que estabeleceram um novo imposto sobre o sal. 


A obra se mostra como uma espécie de hino à liberdade, com questionamentos sobre as causas da dominação de muitos por poucos, da indignação da opressão e das formas como vencê-las. Já no título aparece a contradição do termo servidão voluntária, pois como se pode servir de forma voluntária, isto é, sacrificando a própria liberdade de espontânea vontade? 

Na obra, o autor pergunta-se sobre a possibilidade de cidades inteiras submeterem-se a vontade de um só. De onde um só tira o poder para controlar todos? Isso só poderia acontecer mediante uma espécie de servidão voluntária. Ele afirma então que são os próprios homens que se fazem dominar, pois, caso quisessem sua liberdade de volta, precisariam apenas de se rebelar para consegui-la. 

Étienne afirma que é possível resistir à opressão, e ainda por cima sem recorrer à violência - segundo ele a tirania se destrói sozinha quando os indivíduos se recusam a consentir com sua própria escravidão. Como a autoridade constrói seu poder principalmente com a obediência consentida dos oprimidos, uma estratégia de resistência sem violência é possível, organizando coletivamente a recusa de obedecer ou colaborar.

Graças a suas reflexões profundas sobre a condição humana e a liberdade, La Boétie é considerado um filósofo de tradição libertária e um precursor do pensamento anarquista.

Discurso sobre a Servidão Voluntária

O "Discurso da Servidão Voluntária", escrito em 1548 quando Étienne de La Boétie tinha 18 anos, é uma crítica à legitimidade dos governantes, chamados por ele de “tiranos”. La Boétie explica de que maneira os povos podem se submeter voluntariamente ao governo de um só homem: em primeiro lugar, pelo hábito, uma vez que quem está acostumado à servidão tende a não questioná-la; em seguida, pela religião e pela superstição que se cria em torno da figura do líder. 

No entanto, não são apenas esses dois métodos os elementos necessários para criar a servidão voluntária: o segredo da dominação consiste em envolver o dominado na própria estrutura da dominação, a saber, uma pirâmide de poder: o tirano domina meia dúzia, essa meia dúzia domina seiscentos, esses seiscentos dominam seis mil, e abaixo desses seis mil vêm todos os outros. Para dominar a meia dúzia, ou seja, os seus cortesãos, o tirano atira-lhes migalhas, e estes, gratos, aceitam a submissão. Essa estrutura de domínio é repetida, então, nos demais níveis: a meia dúzia em relação aos seiscentos; os seiscentos em relação aos seis mil; os seis mil em relação a todos os outros. 

Para La Boétie, os que estão em volta do tirano são os menos livres de todos, pois, se as outras pessoas estão obrigadas a obedecer, esses, além disso, querem antecipar os desejos do tirano, escolhendo, com essa atitude, livremente a própria servidão. Portanto, os que estão na base da pirâmide, os camponeses e artesãos, são, em certo sentido, mais livres e mais felizes, pois após obedecerem a uma ordem, podem gastar o resto do tempo com o que quiserem; já os cortesãos, por estarem próximos ao tirano, estão afastados dessa liberdade. 

O autor quer levar seus leitores a refletir sobre uma questão que está na base da política: o motivo que leva as pessoas a obedecerem. Concretamente, o que está por trás dessa questão é entender a causa que pode levar uma pessoa a abrir mão de sua própria liberdade, já que, para obtê-la, o homem precisa apenas desejá-la. Assim, a servidão voluntária, em La Boétie, se refere à perda do desejo de liberdade, uma vez que, “os homens, enquanto neles houver algo de humano, só se deixam subjugar se forem forçados ou enganados”. Para ele, é possível que os homens percam a liberdade pela força, mas o que surpreende é o fato de não lutarem para reconquistá-la. 

No livro, são descritos três tipos de tiranos: os que chegam ao poder pela eleição do povo, pela força ou pela sucessão de raça. Mas, independentemente da forma como o tirano tenha chegado ao poder, o que intriga é o fato de as pessoas continuarem a obedecê-lo mesmo quando prejudicadas por ele. O autor defende ainda a igualdade de todos os homens na dimensão política: “Uma coisa é claríssima na natureza, tão clara que a ninguém é permitido ser cego a tal respeito, e é o fato de a natureza, ministra de Deus e governanta dos homens, nos ter feito todos iguais, com igual forma, aparentemente num mesmo molde, de forma a que todos nos reconhecêssemos como companheiros ou mesmo irmãos”.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

A esquerda e a direita, segundo Ariano Suassuna


Comentário do blog

Apresento este belo artigo de Ariano Suassuna, grande escritor, poeta, dramaturgo e líder do movimento armorial que, segundo a Wikipédia, é um movimento que tem como objetivo criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste brasileiro. 

O cenário brasileiro e mundial pelo qual passamos nesta quadra da história é momento propício para leituras, análises e reflexões políticas e ideológicas com a necessária tolerância do debate de ideias.

Eu me situo no campo da esquerda, não tenho dúvida alguma sobre isso. São várias as linhas de abordagem para reflexão a respeito do conceito de esquerda e direita. 

Sou um cidadão brasileiro e ator político porque sou representante de pessoas, cumpro mandato eletivo a partir da comunidade dos funcionários do Banco do Brasil. Me esforço muito para valorizar a representação política, que nada mais é que a solução pacífica das controvérsias.

Atuei muitos anos no movimento social e sindical e tenho muito respeito ao debate de ideias e à democracia, que só existe com participação social efetiva.

É isso, o artigo é bem interessante.

Abraços, William 


Foto que ilustra o artigo na Carta Maior.

Fonte: Carta Maior - 24/7/2014

Não concordo com a afirmação, hoje muito comum, de que não mais existem esquerda e direita. Acho até que quem diz isso normalmente é de direita.

Talvez eu pense assim porque mantenho, ainda hoje, uma visão religiosa do mundo e do homem, visão que, muito moço, alguns mestres me ajudaram a encontrar. Entre eles, talvez os mais importantes tenham sido Dostoiévski e aquela grande mulher que foi Santa Teresa de Ávila.

Como consequência, também minha visão política tem substrato religioso. Olhando para o futuro, acredito que enquanto houver um desvalido, enquanto perdurar a injustiça com os infortunados de qualquer natureza, teremos que pensar e repensar a história em termos de esquerda e direita.

Temos também que olhar para trás e constatar que Herodes e Pilatos eram de direita, enquanto o Cristo e São João Batista eram de esquerda. Judas inicialmente era da esquerda. Traiu e passou para o outro lado: o de Barrabás, aquele criminoso que, com apoio da direita e do povo por ela enganado, na primeira grande “assembleia geral” da história moderna, ganhou contra o Cristo uma eleição decisiva.

De esquerda eram também os apóstolos que estabeleceram a primeira comunidade cristã, em bases muito parecidas com as do pré-socialismo organizado em Canudos por Antônio Conselheiro. Para demonstrar isso, basta comparar o texto de São Lucas, nos “Atos dos Apóstolos”, com o de Euclydes da Cunha em “Os Sertões”.

Escreve o primeiro: “Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum. Não havia entre eles necessitado algum. Os que possuíam terras e casas, vendiam-nas, traziam os valores das vendas e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um, segundo a sua necessidade”.

Afirma o segundo, sobre o pré-socialismo dos seguidores de Antônio Conselheiro: “A propriedade tornou-se-lhes uma forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos: apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota parte, revertendo o resto para a companhia” (isto é, para a comunidade).

Concluo recordando que, no Brasil atual, outra maneira fácil de manter clara a distinção é a seguinte: quem é de esquerda, luta para manter a soberania nacional e é socialista; quem é de direita, é entreguista e capitalista. Quem, na sua visão do social, coloca a ênfase na justiça, é de esquerda. Quem a coloca na eficácia e no lucro, é de direita.

Ariano Suassuna, ícone do Movimento Armorial, faleceu em 23/7/14, aos 83 anos de idade. É paraibano e passou grande parte de sua vida em Pernambuco.


Fonte: Carta Maior, reproduzido do site do MST

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Leitura: Memorial de Aires (1908) - Machado de Assis





Refeição Cultural

Olá amig@s leitores e apreciadores de literatura,

Meu período de leituras nas férias está acabando. Como é prazerosa a leitura de literatura! Principalmente quando feita ao sabor de projetos e percursos literários montados para nos levar a certos tipos de reflexões.

Para este mês de janeiro de 2017, planejei terminar a leitura de ao menos um ou dois livros que já vinha lendo há tempos. Também escolhi ler algum autor estrangeiro e leitores brasileiros do Nordeste. Por fim, faria a leitura de algo mais que aparecesse ao bel-prazer.

Hoje, completei um de meus percursos machadianos: finalizei a leitura de Memorial de Aires, o último romance publicado pelo Bruxo do Cosme Velho, pouco antes de falecer.

Agora, posso dizer que li todos os romances de Machado. Dias atrás, vi um texto alegando que há um décimo romance, descoberto e publicado décadas depois de sua morte, mas formalmente estes são os romances:

- Ressurreição (1972)
- A Mão e a Luva (1974)
- Helena (1876)
- Iaiá Garcia (1878)
- Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
- Quincas Borba (1891)
- Dom Casmurro (1899)
- Esaú e Jacó (1904)
- Memorial de Aires (1908)

Boa parte desses romances saiu primeiro em folhetins, durante meses, para depois sair editada como livros. O autor também publicou centenas de contos ao longo de sua vida. Eu já li vários e continuo na busca de ler todos eles.

O Memorial de Aires é bastante autoral. Machado estava vivendo os últimos anos de sua vida e havia perdido sua esposa pouco antes da publicação. Um amor e companheirismo de quase 35 anos. Em vários momentos, vemos Machado falando através do velho e aposentado Conselheiro Aires.

Quando fui atrás de meu volume para ler (tenho a coleção da Editora Globo, 1997) estava decidido a reler postagens de meus blogs e me bateu uma vontade de ler este romance, pois já conhecia o enredo do livro em formado de diário.

Uma questão bem interessante para quem gosta de história do Brasil é o período abordado neste romance: os anos de 1888 e 1889, no Rio de Janeiro de fim de escravidão e Império. O cenário é pano de fundo das memórias e reflexões do Conselheiro Aires.

Diferente de alguns livros que comentamos aqui, com edições esgotadas, este romance é facilmente encontrado em sebos, até por 5 reais.


FRASES MACHADIANAS

Uma das coisas que adoro são as construções sintáticas e estilísticas de Machado. Exemplos:

- "Já meu cunhado dizia que era seu costume dela, quando queria alguma cousa"

- "e aconselhou-me a ir cumprimentá-los por ocasião das festas aniversárias"

ou

- "Não teve irmãos, mas a afeição fraternal estaria incluída na amical, em que se dividia também"

e ainda:

- "O abraço que lá contei atrás fê-me bem; foi sincero"


OLHA O NOSSO BANCO DO BRASIL

"Lá achei Fidélia, um primo desta, filho do desembargador, aluno da Escola de Marinha (16 anos) e um empregado do Banco do Brasil"


MACHADO PREVIU AS REDES SOCIAIS COMO FACEBOOK E INSTAGRAM

"Eu gosto de ver impressas as notícias particulares, é bom uso, faz da vida de cada um ocupação de todos. Já as tenho visto assim e não só impressas, mas até gravadas. Tempo há de vir em que a fotografia entrará no quarto dos moribundos para lhes fixar os últimos instantes; e se ocorrer maior intimidade entrará também"


FAUSTO, DE GOETHE

"Ainda uma vez concordou que era eu, mas emendou em parte, dizendo que a nossa aposta é que ela casaria comigo, e citou a aposta entre Deus e o Diabo a propósito de Fausto, que eu lhe li aqui em casa no texto de Goethe"


O MEMORIAL, HÁ QUE SE CONTINUAR

"Não quero acabar o dia de hoje sem escrever que tenho os olhos cansados, acaso doentes, e não sei se continuarei este diário de fatos, impressões e ideias. Talvez seja melhor parar. Velhice quer descanso. Bastam já as cartas que escrevo em resposta e outras mais..."

(...)

"Qual! Não posso interromper o Memorial; aqui me tenho outra vez com a pena na mão. Era verdade, dá certo gosto deitar ao papel cousas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão. Venhamos novamente à notação dos dias"


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Termino a postagem com o mesmo dito pelo Conselheiro Aires em relação ao Blog (Memorial). Dá vontade de interromper o trabalho das postagens, mas temos que registrar o que nos vem à cabeça e o que pensamos dos fatos e acontecimentos. 

Sigamos as notações...

William
Um leitor

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Leitura: Mar Morto (1936) - Jorge Amado


Jorge Amado. Acervo Fundação Casa de Jorge Amado.

Refeição Cultural

"Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte..." (Mar Morto, Jorge Amado)


Dentre as leituras que escolhi para este mês de janeiro - estou em férias -, além das fáusticas, elenquei alguns autores e contextos relacionados ao Nordeste brasileiro. Já li João Cabral de Melo Neto e li nesta segunda-feira (23) dois livros clássicos de Manuel Bandeira: Libertinagem (1930) e Estrela da Manhã (1936). São livros que marcam mudanças na poética de nosso querido poeta pernambucano.

Eu havia lido o romance Mar Morto, de Jorge Amado, quando era adolescente. Foi um dos períodos mais marcantes de minha vida. O contexto miserável de nosso país nos anos oitenta recheia aquela época de minha primeira leitura.

Reli entre os dias 15 e 21 de janeiro esta obra da primeira fase da carreira de Jorge Amado, fase de forte denúncia social, e novamente fiquei muito tocado por ela. Comecei a leitura olhando para o mar de Porto de Galinhas, em Pernambuco, e fui terminar de lê-la em Brasília.

Na leitura de alguns poemas de Manuel Bandeira, vieram-me à mente as histórias e causos dos marítimos, daqueles que vivem do mar. A obra de Bandeira é contemporânea do romance de Jorge Amado. No livro Estrela da Manhã (1936), temos os poemas "Marinheiro Triste" e "D. Janaína".


"D. JANAINA

D. Janaína
Sereia do mar
D. Janaína
De maiô encarnado
D. Janaína
Vai se banhar.

D. Janaína
Princesa do mar
D. Janaína
Tem muitos amores
É o rei do Congo
É o rei de Aloanda
É o sultão-dos-matos
É S. Salavá!

Saravá saravá
D. Janaína
Rainha do mar!

D. Janaína
Princesa do mar
Dai-me licença
Pra eu também brincar
No vosso reinado."

(Estrela da Manhã, 1936, Manuel Bandeira)

Consegui ler a mesma edição
que li décadas atrás.
Meu primo deu ela pra mim.

DESTINOS IGUAIS (E IMUTÁVEIS)

"E, se numa noite, lhe viessem trazer a notícia de que Guma estava no fundo do mar e o Valente vagava sem rumo, sem leme, sem guia? Só então ela sentia toda a dor de Judith, se sentiu totalmente sua irmã, irmã também de Maria Clara, de todas as mulheres do mar, mulheres de destinos iguais: esperar numa noite de tempestade a notícia da morte de um homem."


DESPEDIDAS SÃO LONGOS ADEUSES

"Quando se despedem das mulheres não dão rápidos beijos, como os homens da terra que vão para os seus negócios. Dão adeuses longos, mãos que acenam, como que ainda chamando."


IEMANJÁ DOS CINCO NOMES - Iemanjá, dona das águas, senhora dos oceanos; Janaína, dos canoeiros; Inaê ou Princesa de Aiocá, dos pretos, seus filhos mais diletos; e Dona Maria, como a tratam as mulheres do cais.

"Lívia pensa com raiva em Iemanjá. Ela é a mãe-d'água, é a dona do mar, e por isso, todos os homens que vivem em cima das ondas a temem e a amam. Ela castiga. Ela nunca se mostra aos homens a não ser quando eles morrem no mar (...) a mãe-d'água é loira e tem cabelos compridos e anda nua debaixo das ondas, vestida somente com os cabelos que a gente vê quando a lua passa sobre o mar."


IEMANJÁ MORA NA BAHIA

"O oceano é muito grande, o mar é uma estrada sem fim, as águas são muito mais que metade do mundo, são três quartas partes, e tudo isso é de Iemanjá. No entanto, ela mora é na pedra do Dique do cais da Bahia ou na sua loca em Monte Serrat. Podia morar nas cidades do Mediterrâneo, nos mares da China, na Califórnia, no mar Egeu, no golfo do México. Antigamente ela morava nas costas da África, que dizem que é perto das terras de Aiocá. Mas veio para a Bahia ver as águas do rio Paraguaçu. E ficou morando no cais, perto do Dique, numa pedra que é sagrada. Lá ela penteia os cabelos (vêm mucamas lindas com pentes de praia e marfim), ela ouve as preces das mulheres marítimas, desencadeia as tempestades, escolhe os homens que há de levar para o passeio infindável no fundo do mar. E é ali que se realiza a sua festa, mais bonita que todas as procissões da Bahia, mais bonita que todas as macumbas, que ela é dos orixás mais poderosos, ela é dos primeiros, daqueles de onde os outros vieram..."


COSMOGONIA BAIANA

"Iemanjá é assim terrível porque ela é mãe e esposa. Aquelas águas nasceram-lhe no dia em que seu filho a possuiu. Não são muitos no cais que sabem da história de Iemanjá e de Orungã, seu filho. Mas Anselmo sabe e também o velho Francisco. No entanto, eles não vivem contando essa história, que ela faz desencadear a cólera de Janaína. Foi o caso que Iemanjá teve de Aganju, deus da terra firme, um filho, Orungã, que foi feito deus dos ares, de tudo que fica entre a terra e o céu. Orungã rodou por estas terras, viveu por esses ares, mas o seu pensamento não saía da imagem da mãe, aquela bela rainha das águas. Ela era mais bonita que todas e os desejos dele eram todos para ela. E um dia, não resistiu e a violentou. Iemanjá fugiu e na fuga seus seios romperam, e assim, surgiram as águas, e também essa Bahia de Todos os Santos. E do seu ventre, fecundado pelo filho, nasceram os orixás mais temidos, aqueles que mandam nos raios, nas tempestades e trovões..."


ANOS 30... NA ESPERANÇA DE UM FUTURO MELHOR

" - Você nunca imaginou esse mar cheio de saveiros limpos, com marítimos bem alimentados, ganhando o que merecem, as esposas com o futuro garantido, os filhos na escola não durante seis meses, mas todo o tempo, depois indo aqueles que têm vocação para as faculdades? Já pensou em postos de salvamento nos rios, na boca da barra? Às vezes eu imagino o cais assim..."

COMENTÁRIO: com políticas públicas e vontade política, vimos isso no início do século 21 e sabemos que é possível melhorar a vida do povo mais pobre e humilde, dependente do Estado.


A ETERNA QUESTÃO DA CULTURA DA RAÇA BRANCA

" - É só você pedir a Rufino.
- Aquele? E quero lá filho de negro! Estou precisando de um filho de gente mais branca do que eu para melhorar a família..."


TRAGÉDIAS COTIDIANAS DO DIA A DIA DO MAR

"Alcançavam a boca da barra. Destroços de três saveiros boiavam. O temporal tentava naufragar os que vinham salvar. Pessoas seguravam-se em pedaços de tábua, nos cacos dos saveiros. E gritavam, choravam, menos Paulo que era mestre de um dos saveiros naufragados e segurava uma criança nos braços. Os tubarões já tinham pegado dois e de um terceiro arrancaram a perna. Mestre Manuel começou a recolher gente no seu saveiro. Outros faziam o mesmo, mas nem sempre era fácil, os saveiros iam e vinham, alguns náufragos se soltavam das tábuas onde se seguravam e não tinham tempo de alcançar o saveiro, desapareciam no fundo da água. Paulo entregou a criança a Manuel. Quando entrou para o saveiro disse:

- Era cinco. Só ficou esse..."


Comentário Final

MAR MORTO? NAVEGAMOS NA POLÍTICA DE INCLUSÃO E NAUFRAGAMOS... E AGORA, JOSÉ?

Nesta quadra da história em que estamos, no pós crash do subprime de 2008, no pós golpe de estado no Brasil, com alguns magnatas e suas corporações que detêm a riqueza da metade da população mundial, "pessoas" jurídicas que desconsideram a existência de países, povos e ecossistemas, na era da pós-verdade, determinada pela capacidade dos detentores de maior poder de imposição/influência de seus desejos sobre a maioria, onde pouco importam as verdades factuais, enfim, que posso esperar para o amanhã dos milhões e bilhões de humanos não incluídos no 1% que brinca com o tabuleiro-mundo?

As ferramentas de manipulação de massas estão com os donos do mundo (1%). Eles não só mantêm a massa pacificamente e bovinamente amestrada, criando pautas que encobrem e desviam a atenção, com pão e circo e consumos de porcarias que afagam desejos epicuristas, como também adestram a massa humana para defender a ideologia da classe dominante (o 1%).

E agora, José?


William


Bibliografia:

AMADO, Jorge. Mar Morto. Círculo do Livro. 

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Leitura: O Sol Também se Levanta (1926) - Hemingway



(atualizado em 31/12/17)



Refeição Cultural

"(...) Desejaria que Mike não tivesse tratado Cohn de maneira tão cruel. Mike, quando bebia, era mau; Brett sabia beber e Bill também. Cohn jamais se embriagava. Passado um certo limite, Mike tornava-se desagradável. Eu gostava de vê-lo magoar Cohn e, contudo, desejaria que não o fizesse, porque, em seguida, sentia repulsa de mim mesmo. E nisto consiste a moral: coisas que fazemos e das quais depois sentimos repulsa. Não, isso devia ser imoralidade, ponto de vista muito amplo..." (O Sol Também se Levanta, Hemingway)


Li novamente este romance entre os dias 11 e 14 de janeiro de 2017. Havia lido ele na juventude, décadas atrás. Diria que li numa época de desilusões, anos oitenta. Vinha vivendo nos últimos quinze anos num país e numa América do Sul que avançavam para a minha classe, a classe trabalhadora, no início deste século 21, pois vários países latino-americanos priorizavam políticas públicas para melhorias dos povos mais necessitados do Estado, em oposição ao histórico secular de governos identificados com as elites tradicionais.

A releitura deste clássico de Ernest Hemingway se deu agora em um contexto político, econômico e social no qual me foi possível sentir uma identificação incrível com certa característica de um dos personagens do enredo, o protagonista Barnes (Jake). Apesar de sua impotência ser física, por ferimento de guerra, existe na obra uma abordagem metafórica de impotência de toda uma geração perante os acontecimentos do mundo, daquele mundo pós 1ª Guerra Mundial, um mundo em crise política, econômica e social.

O pessimismo da razão não me permite esconder o quanto estou me sentindo impotente perante os acontecimentos da atualidade, tanto em meu país quanto no mundo. O bem-sucedido Golpe de Estado no Brasil e a evidente pusilanimidade do povo e, principalmente, das lideranças e entidades da sociedade civil e de trabalhadores, nos põe com uma tristeza interior que só é superada quando mentalizamos de forma militante e focada as lutas que nós mesmos estamos liderando em nome de eleitores representados em um mandato eletivo.

O mundo de 2017 aponta que menos de dez pessoas têm a riqueza de 3,5 bilhões de seres humanos. No Brasil, a mesma coisa. Menos de dez sujeitos detêm a riqueza de 100 milhões de brasileiros. Eu sou de esquerda e entendo que essa acumulação não é "normal", certa e aceitável. Não é justa. Só nos resta lutar contra isso. Em todos os momentos de nossa existência.

Outro fator comum na leitura de bons livros como este é o desejo instigado que ficamos de acabar o volume e pegar para ler os outros do mesmo autor. Meu conhecimento de Hemingway é pequeno, para quem é amante da literatura. Além deste romance, só li O Velho e o Mar (1956), ler comentário AQUI

Fiquei louco para ler Adeus às Armas (1929) e Por Quem os Sinos Dobram (1940). Até cheguei a pesquisar na internet para comprar, mas são dois volumes grandes e de difícil inclusão em minha realidade de leituras.

Enfim, um século depois do contexto da obra de Hemingway, o mundo volta a viver um período de ascensões de ideias fascistas, deformações de valores mais tradicionais de ética, moral, caráter, justiça, de republicanismo e democracia. A era é a da pós-verdade. Não nos portaremos aceitando isso no nosso dia a dia de cidadão do mundo.

William


Post Scriptum (14/04/17):

Que bom reler a postagem e poder dizer que acabei de ler "Adeus às armas" de 1929. Tenho feito um esforço sobre-humano para ler e preencher lacunas culturais em minha formação. Vou publicar postagem a respeito da obra.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Diário e reflexões - 210117



Um pôr do sol em nosso querido país Brasil.

Sábado, Brasília (DF).

Fiquei vários dias sem acessar as redes sociais. Sem frequentar as bolhas onde estou situado. Falo daquelas bolhas sociais onde os povos do mundo virtual estão alocados e apartados por gostos iguais e sem espaço para as diferenças, as nuanças.

Por outro lado, se achava que "me isolaria" do mundo que conhecemos, conhecíamos, em fase de desfazimento, estava redondamente enganado. Não tem como se isolar no mundo pequeno em que habitamos, o nosso único e pequeno Planeta Terra, porque apesar da imensa dimensão geográfica, é pequeno com a tecnologia que inventamos.

No período que chamamos de "férias", busco as leituras, os balanços, retrospectivas, idealizo formas de voltar dias depois à rotina com estratégias de realizar coisas e ser menos infeliz, ou ter um pouco mais de alegria no viver. É da natureza humana aproveitar esses momentos para essas reflexões e planejamentos pessoais.

Estou lendo muito. Além de ler vários artigos de conhecimento, política, cultura e mundo, li mais dois livros nestes dias de ausência dos blogs que mantenho. Li Mar morto (1936), do grande brasileiro Jorge Amado, e O sol também se levanta (1926), do norte-americano Ernest Hemingway. Ambos me deixaram pensando muito. Ambos, cada um ao seu jeito, me trazem reflexões sobre o mundo em desfazimento em que nos encontramos em 2017.

Estamos num momento da história humana em que alguns estudiosos começam a chamar de época ou era da "pós-verdade". Não importa mais a verdade factual em nossa vida social, a verdade é um detalhe sem importância, caso ela não se vincule ou confirme as teses hegemônicas dos grupos com mais capacidade de influenciar as massas humanas.

De certa forma, para quem sempre lutou por um tipo de sociedade e de mundo como eu, os tempos de pós-verdade trazem desafios quase que intransponíveis, mas estamos refletindo que lutar é preciso, até o fim, sempre, e nunca desistir, mesmo nos situando do lado das minorias, nas contra-hegemonias do sistema que governa o mundo.

Nas revisões que ando fazendo das dezenas de textos que produzi no último período de minha vida, tanto no blog de trabalho quanto no de cultura, estou concluindo que é uma espécie de obrigação deste cidadão seguir escrevendo, registrando, compartilhando o que pensamos e defendemos.

É isso, voltamos para as postagens.

William

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Leitura: O Rio (1953) - João Cabral de Melo Neto





O Rio

ou

Relação da viagem
que faz o Capibaribe
de sua nascente
à cidade do Recife (1953)



Refeição Cultural

Hoje tive a felicidade de ler a obra O Rio, de João Cabral de Melo Neto. É fantástica! A personagem é nada mais nada menos que o Rio Capibaribe nos contando seu percurso desde a nascente até o mar.

Enquanto vamos lendo, vamos nos identificando, vamos nos emocionando com tudo o que o Rio vê e nos conta, as misérias, os retirantes, a destruição causada pelos usineiros. Só de comentar aqui no blog, já nos arrepiamos.

Que momento para a leitura de João Cabral! Nosso querido e sofrido País está de novo entregue a golpistas e exploradores de nossa terra e nossa gente. Eu recomendo muito aos amig@s leitores a leitura deste poema de 1953.

Eu ganhei este livro com algumas obras de João Cabral em um dos cursos de formação que organizamos na época em que estava na Contraf. Agradeço novamente ao Alex pelo excelente presente que me deu!

Segue abaixo algumas passagens que me tocaram muito.


O RIO (1953)

"Da lagoa da Estaca a Apolinário

Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.
Eu já nasci descendo
a serra que se diz do Jacarará,
entre caraibeiras
de que só sei por ouvir contar
(pois, também como gente,
não consigo me lembrar
dessas primeiras léguas
de meu caminhar).

(...)"

Assim começa a aventura do Rio Capibaribe rumo ao mar...


"Do riacho das Éguas ao ribeiro do Mel

(...)
Entretanto a paisagem,
com tantos nomes, é quase a mesma.
A mesma dor calada,
o mesmo soluço seco,
mesma morte de coisa
que não apodrece mas seca.

(...)"

O Rio vai encontrando a mesma paisagem, o mesmo sofrimento desde a nascente até a chegada a Recife.


"Terras de Limoeiro

Vou na mesma paisagem
reduzida à sua pedra.
A vida veste ainda
sua mais dura pele.
Só que aqui há mais homens
para vencer tanta pedra,
para amassar com sangue
os ossos duros desta terra.
E, se aqui há mais homens,
esses homens melhor conhecem
como obrigar o chão
com plantas que comem pedra.
Há aqui homens mais homens
que em sua luta contra a pedra
sabem como se armar
com as qualidades da pedra.

(...)"

Reflexão: há que se alimentar das pedras e da qualidade das pedras...


"O trem de ferro

(...)
Diversa da dos trens
é a viagem que fazem os rios:
convivem com as coisas
entre as quais vão fluindo;
demoram nos remansos
para descansar e dormir;
convivem com a gente
sem se apressar em fugir.

(...)"

Fiquei pensando na minha natureza política: sair da burocracia e conviver com as gentes, como o Rio.


"Descoberta da Usina

(...)
Vira usinas comer
as terras que iam encontrando;
com grandes canaviais
todas as várzeas ocupando.
O canavial é a boca
com que primeiro vão devorando
matas e capoeiras,
pastos e cercados;
com que devoram a terra
onde um homem plantou seu roçado;
depois os poucos metros
onde ele plantou sua casa;
depois o pouco espaço
de que precisa um homem sentado;
depois os sete palmos
onde ele vai ser enterrado.

(...)"

Esse é o mal da exploração predatória desde o início em nossa ex-colônia brazil pelo mesmo 1% dono de tudo.


"Encontro com a Usina

Mas na Usina é que vi
aquela boca maior
que existe por detrás
das bocas que ela plantou;
que come o canavial
que contra as terras soltou;
que come o canavial
e tudo o que ele devorou;
que come o canavial
e as casas que ele assaltou;
que come o canavial
e as caldeiras que sufocou.
Só na Usina é que vi
aquela boca maior,
a boca que devora
bocas que devorar mandou.

Na vila da Usina
é que fui descobrir a gente
que as canas expulsaram
das ribanceiras e vazantes;
e que essa gente mesma
na boca da Usina são os dentes;
que mastigam a cana
que a mastigou enquanto gente;
que mastigam a cana
que mastigou anteriormente
as moendas dos engenhos
que mastigavam antes outra gente;
que nessa gente mesma,
nos dentes fracos que ela arrenda,
as moendas estrangeiras
sua força melhor assentam.

(...)"

O Rio Capibaribe vai chegando a Recife... e com ele o povo retirante.


"De São Lourenço à Ponte de Prata

(...)
Ao entrar no Recife,
não pensem que entro só.
Entra comigo a gente
que comigo baixou
por essa velha estrada
que vem do interior;
entram comigo rios
a quem o mar chamou,
entra comigo a gente
que com o mar sonhou,
e também retirantes
em quem só o suor não secou;
e entra essa gente triste,
a mais triste que já baixou,
a gente que a usina,
depois de mastigar, largou.

(...)"

E o Rio segue contando o que vê chegando ao final de seu percurso...


"De Apipucos à Madalena

(...)
Um velho cais roído
e uma fila de oitizeiros
há na curva mais lenta
do caminho pela Jaqueira,
onde (não mais está)
um menino bastante guenzo
de tarde olhava o rio
como se filme de cinema;
via-me, rio, passar
com meu variado cortejo
de coisas vivas, mortas,
coisas de lixo e de despejo;
viu o mesmo boi morto
que Manuel viu numa cheia,
viu ilhas navegando,
arrancadas das ribanceiras.

(...)"

O Rio Capibaribe vê o próprio poeta João Cabral em sua margem. O mesmo Rio que Manuel Bandeira já versava na Evocação do Recife...

      [ "Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu

      E nos pegões da ponte do trem de ferro
      os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras"]


"Dos Coelhos ao cais de Santa Rita

(...)
Rio lento de várzea,
vou agora ainda mais lento,
que agora minhas águas
de tanta lama me pesam.
Vou agora tão lento,
porque é pesado o que carrego:
vou carregado de ilhas
recolhidas enquanto desço;
de ilhas de terra preta,
imagem do homem aqui de perto
e do homem que encontrei
no meu comprido trajeto
(também a dor desse homem
me impõe essa passada de doença,
arrastada, de lama,
e assim cuidadosa e atenta).

(...)"

Assim como o Rio, vamos lentos e pesados pelo fardo que carregamos nesta quadra da história de nosso País...


"Tudo o que encontrei
na minha longa descida,
montanhas, povoados,
caieiras, viveiros, olarias,
mesmo esses pés de cana
que tão iguais me pareciam,
tudo levava um nome
com que poder ser conhecido.
A não ser esta gente
que pelos mangues habita:
eles são gente apenas
sem nenhum nome que os distinga;
que os distinga na morte
que aqui é anônima e seguida.
São como ondas de mar,
uma só onda, e sucessiva..."


Ao fim da leitura do poema, estamos de olhos úmidos, lágrima grossa com a mesma consistência que o Capibaribe que chegou ao mar: grosso de lama e pesar.

William


Post Scriptum:

Estava pensando, enquanto li este poema hoje, eu acompanhava mais uma reunião de trabalho na entidade de saúde que participo como gestor eleito pelos associados. Pode ser que quando estiver em outra época, em outras paragens, eu dê voz às paredes da entidade para que elas, assim como o Capibaribe, falem por si mesmas, tudo que viram por anos e anos nas duras discussões entre gestores eleitos e indicados.


Bibliografia:

MELO NETO, João Cabral de. Morte e Vida Severina e outros poemas. Alfaguara. Rio de Janeiro. Direitos da Objetiva 2007.