terça-feira, 20 de novembro de 2012

Rocky, um lutador - 1976



Capa do dvd comemorativo.

Refeição Cultural

Por que será que cheguei nesta segunda-feira e coloquei o filme Rocky mais uma vez?

Dane-se quem sou atualmente (como diz o texto "O nome" de Rubem Alves). Sou alguém que tem uma história de vida. Um passado e um presente. Mas quem sabe se eu não gostaria de me libertar do quadrado onde estão as instruções e comportamentos que carregam o meu nome?

Já vi esse filme trocentas vezes. É claro, vejo repetidas vezes porque ele me remete a um tempo: ao meu passado.

O filme é a típica história norte-americana, daquela que o politicamente correto cidadão que sou hoje não gosta, sobre o cara que encarna a ideia americana de "faça você mesmo e vença sozinho na terra da oportunidade". Bahh! Minha vida miserável nos anos oitenta foi assim como a de outros milhões de cidadãos brasileiros.

Mas o filme é humano. Conta a história de personagens comuns, desses que têm em qualquer lugar do mundo.

Vejo esse filme ou outros do gênero dos anos oitenta toda vez que estou mal. Toda vez que estou triste, desanimado, pusilânime. Sempre que estou para desistir de lutar.

Quando eu tinha uns doze ou treze anos, vi esse filme pela primeira vez. Já trabalhava no pesado. Vivia numa casa barracão de placas de muros. Andava no meio das gangues do bairro onde morava lá em Uberlândia. A sobrevivência era dura.

Fico tentando me ver com essa idade e não consigo me lembrar. É difícil. Nem foto tenho de minha adolescência. Mas é verdade! Eu tomava ovos crus quebrados no copo como faz Rocky no filme. Corria pelas ruas. Tentava me fazer de durão. Eu trabalhava em construções já na adolescência. Lutava diariamente para suportar dor física e moral. Eu sobrevivia porque tinha muito ódio do mundo. Isso me movia.

Alguns momentos no filme ainda hoje são substanciais e se encaixam em minha vida. Por exemplo, quando vejo a cena do Rocky dando um sermão na pequena Mary e depois ela o ofende, ele cai na real e se pergunta que moral tem ele para dar conselhos a alguém. É perfeito para mim: quem sou eu para dar conselhos para alguém com a vida pessoal toda torta e infeliz que tenho?

A vida no nosso país e no mundo é bem diferente dos anos oitenta (óbvio!). Hoje é proibido trabalhar antes dos 16 anos e há uma pequena melhora na distribuição de renda no Brasil que incluiu umas dezenas de milhões de pessoas no consumo de mercadorias do capitalismo. Isso significa que milhões de jovens como meu filho podem se dar ao luxo de só ficarem em casa e estudarem e jogarem videogame. Hoje são adolescentes até os trinta anos. Mesmo assim, grande parte dos jovens é revoltada, eles são infelizes, não querem saber de estudar, são ingratos e odeiam os pais e o mundo...

Vai entender... (talvez seja o efeito de crescer na liberdade plena e com menos miséria que nas décadas anteriores)

Apesar de passar dos quarenta anos, estou precisando achar aquela coisa que me moveu durante boa parte da existência. Tem muita coisa me deixando infeliz na vida pessoal e na vida profissional (militância sindical), mas eu estou vivo e sendo assim tenho que aguentar todos os rounds da luta da vida. Sem cair até o final.

Que seja assim!

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Refeição Cultural - ?


(atualizado em 18/11/12)

Quando iniciei este blog de cultura, tinha a intenção de digitar e partilhar todas as belas aulas de literatura que tive na Universidade de São Paulo. O desejo sempre foi o de escrever algo que fosse útil para as pessoas.

O tempo foi passando e eu nunca consegui sentar para reler e escrever decentemente as aulas de literatura brasileira, portuguesa, hispano-americana e espanhola. Apesar disso, nunca perdi o propósito de escrever algo de útil para as pessoas que acessam gratuitamente a rede mundial de computadores.

Ando refletindo, porém, sobre a validade do que escrevo e do tempo que gasto nisso. Ando refletindo sobre muita coisa, sobre a utilidade de muita coisa. Inclusive, se está valendo a pena tudo o que faço.

Também passei a usar o blog como um fichário das minhas leituras. As postagens poderiam ser úteis para alguém.

Eu tenho umas fixações meio idiotas. Gostaria de ler em ordem cronológica obras completas de um monte de autores. Gostaria que o mundo e as pessoas fossem menos ingratos. Gostaria de ser menos infeliz e achar algum contentamento na minha existência. Gostaria de ser um intelectual, mesmo que isso não servisse para nada, nem pra mim, nem pro mundo.

Meu tempo acabou. Não tenho tempo para mais nada. Se eu fizer tudo o que acho ideal para ser um bom secretário nacional de formação dos bancários e para ser um bom coordenador da comissão de empresa dos funcionários do Banco do Brasil, vinte e quatro horas diárias não seriam suficientes. Não seriam.

Mesmo não fazendo todos os planos que tenho para as duas áreas por falta de tempo, neste ano em que fui responsável por essas duas tarefas importantes, acredito ter feito um bom trabalho. Não adiantaria eu esperar reconhecimento por isso, pois no movimento social isso raramente existe.

Voltando à questão do blog e da rede mundial de informações. Será que eu não banalizei o blog?

Já tive conta no facebook e acabei encerrando ela no período da campanha nacional dos bancários porque eu não utilizava a ferramenta interativa como as pessoas vinculadas à sua conta esperam. Mal tive tempo de responder alguém que tenha deixado alguma mensagem.

Estava refletindo há pouco sobre as postagens que tenho feito neste blog há uns cinco anos e no outro sobre a categoria bancária. Se eu não tenho mais tempo de ler, estudar, refletir e ganhar conhecimento para depois escrever sobre ele e partilhar, pra que estou escrevendo?

Eu digo para mim mesmo que odeio exibicionismo e essa futilidade que virou o mundo onde as pessoas ficam postando o que fizeram ou a opinião que têm sobre qualquer coisa. Aliás, é um mundo de imbecilidades e vazios de conteúdo. Então, por que eu fiz mais de uma centena de postagens falando sobre minhas atividades físicas de corrida? Que merda!

A mesma coisa tem sido meu desejo de fazer comentários sobre filmes que assisto. Não estão mais tendo a profundidade que acho que colocava no início. Tem muita coisa boa escrita na rede mundial. Se não é para eu contribuir com algo que preste, o melhor seria eu realmente ficar calado e não escrever mais do mesmo. O mundo está entupido de bobagens e coisas ligeiras, sem profundidade.

No fundo é o nosso ego atuando, auto-idolatria. Só pode ser isso.

Acho que o correto seria eu dar uma maneirada nas publicações e só escrever quando achar que a postagem vai prestar para alguma coisa e contribuir para alguém em algum lugar.

E os contos do Machado de Assis? Será que devo seguir publicando com alguns destaques meus nas leituras? De novo, é essa fixação idiota que falei acima, de querer ser entendedor de alguma coisa, que me fez começar a ler os contos com destaques e às vezes comentários.

Sinceramente, se dependesse de como estou pensando nesse momento, eu deletaria uns trezentos posts desse blog e mais uns quinhentos do blog sobre a categoria bancária. Afinas de contas, parte do que publico lá já está em algum endereço de sindicato ou da confederação. Outro tanto de minha autoria, é para fatos momentâneos e depois perdem a utilidade.

Não sei, vou finalizar e pensar seriamente a respeito da utilidade de tudo o que ando fazendo. Utilidade para o mundo e para mim também.

Fim.


PS: Seguindo com minha reflexão sobre a utilidade do que escrevo, andei pensando que se tem alguma coisa que eu honestamente poderia contribuir para o mundo, seria contar um pouco dos dez anos que passei dentro do movimento sindical. 

Acredito que posso deixar algo sobre a minha prática sindical que valha a pena e possa contribuir para aquelas pessoas que estejam chegando para a organização e representação dos trabalhadores.

Não consigo mais tentar ler literatura enquanto não me dedicar exclusivamente nos próximos meses em acabar meu livro falando desses dez anos no movimento.

O Teles e o Tobias – Machado de Assis

Mestre Machado de Assis.


O Teles e o Tobias – Machado de Assis

CONTOS DE MACHADO DE ASSIS, 1865 (11)

(conto atribuído a Machado)

Publicado originalmente em Semana Ilustrada 1865

(QUADRO DE COSTUMES POLÍTICOS)

I
Empreendo uma Ilíada.
Canta, ó musa, a cólera do juiz de paz Manoel Tobias e do subdelegado Chico Teles!
Naquele tempo, antes dos movimentos políticos de 1848, que deram em terra com um partido, e fizeram subir outro, que mais tarde caiu, por sua vez, como acontece no sistema representativo, viviam em paz, na pequena vila de ***, o subdelegado Chico Teles e o juiz de paz Manoel Tobias.
Ambos eram compadres, e tinham nisso a razão da aliança doméstica, e chefes do mesmo partido, e era esse o motivo da aliança política. Somente, como naquela vila não havia outro partido, eles vinham a ser os senhores da vila, os chefes daquela orquestra passiva e submissa.
De quatro em quatro anos fazia-se uma eleição; Manoel Tobias era sempre o primeiro juiz de paz... por unanimidade; os três outros eram criaturas nulas, sem influência, nem iniciativa, de modo que durante o quatriênio só havia um juiz de paz de fato: Manoel Tobias. Este tinha, portanto, uma influência perpétua. Quanto ao Chico Teles, cuja posição oficial dependia do executivo, tinha conseguido perpetuar-se no cargo, batendo palmas a todos os ministérios, a todos os presidentes da província e a todos os chefes de polícia.
Chico Teles tinha imitado este sistema de um deputado do seu conhecimento.
Viviam em paz os dois amigos e compadres. Todos os domingos jantavam juntos, ora na casa de um ora na casa de outro. As famílias já tinham contraído mesmo algumas alianças de sangue. Cada um deles tinha um filho que os pais mandaram estudar na mesma faculdade de direito, e que deviam tomar grau no mesmo dia.
Não podia haver maior intimidade, e aquele quadro extasiava a população da vila.
S. Francisco era o orago da matriz da vila. Chico Teles era o presidente da irmandade, mas para que Manoel Tobias não deixasse de ter a sua parte na irmandade, Chico Teles fê-lo eleger protetor perpétuo, o que lhe dava o direito de apresentar-se nos dias de festa com a sua comenda ao peito e uma vela enfeitada na mão.
Chico Teles também tinha uma condecoração, arranjada por esforços de Manoel Tobias, que tinha no ministério um amigo, e que mandou para o Rio de Janeiro uma carta, acompanhada do desenho de uma ponte, cuja construção dizia ser devida ao subdelegado, mas que, na realidade, não tinha sido levada a efeito. A ponte foi tomada a sério no Rio de Janeiro, e o ministro apressou-se a mandar a Chico Teles um hábito da Rosa.
Chico Teles quando recebeu o hábito deu dois abraços apertados no compadre e convidou-o a comer de parceria um leitão. Daí a dias havia festa na matriz, e Chico Teles estreou a condecoração.
Ora, como é que dois amigos deste gênero chegaram a romper a amizade, e puseram-se em guerra aberta?
É o que os leitores vão saber no próximo número.

II
Chico Teles possuía um gato, Manoel Tobias tinha um passarinho. Depois de Tobias, o que Teles mais estimava era o gato; depois de Teles, as afeições de Tobias eram pelo passarinho. Minto: o gato e o passarinho tinham mesmo a precedência no coração dos dois funcionários.
Ora, realmente o gato era um belo animal, e o passarinho enchia o olho a quem o via. O gato era todo branco, gordo, grave, tirando neste ponto ao próprio subdelegado. O passarinho era um sabiá da praia, cantor suave e verdadeira delícia da casa. Nas horas da fadiga e de aborrecimento o pássaro distraía o juiz de paz com o seu canto; e as carícias graves do gato encantavam a alma do subdelegado.
Onde quer que Chico Teles fosse ia o gato com ele, mesmo quando se tratava de alguma diligência remota.
Uma tarde de junho, achavam-se os dois funcionários juntos na casa do juiz de paz. Conversavam pacificamente acerca das próximas eleições, e até estavam ambos mordidos pela ideia de pregar uma ligeira derrota ao presidente da província, que aliás também queria fazer o mesmo ao governo central, vindo assim a encontrar-se neste ponto os intentos do ministério com os dois potentados da vila de ***.
Tomavam café, fumavam e conversavam. O gato deixou por alguns minutos a sala e foi brincar com o sabiá; de repente ouvem-se gritos do passarinho, correm dentro, e Manoel Tobias teve a dor de ver o seu pobre sabiá meio devorado pelo gato de Chico Teles.
Houve um grito, mas de furor, de ódio, de vingança. Manoel Tobias não se pôde ter; travou de um cacete e com tanta certeza o atirou sobre o gato que o estendeu morto.
Tal foi a causa que separou em guerra os dois altos funcionários da vila. Nem a intervenção do juiz municipal, nem os conselhos do padre vigário, nada pôde reconciliá-los. Estavam irremediavelmente separados, e aberta a guerra.
E que guerra!
Não houve meio, não houve arma que não fosse empregada por um contra o outro!
Mas então deu-se um fato singular.
Até então havia apenas um partido, cujos chefes principais eram o Teles e o Tobias. O povo da vila vivia em plena paz como um rebanho de carneiros. A eleição fazia-se no meio do maior silêncio e tranquilidade. O governo central mandava o nome do candidato ao presidente da província, o presidente mandava ao juiz de paz e ao subdelegado, e os dois, que arranjavam entre si os eleitores, faziam triunfar os nomes indicados sem oposição nem abalo.
Mas desde que desgraçadamente as exigências gástricas do animal de Chico Teles reduziram a nada o animal de Manoel Tobias, o partido dividiu-se, e os dois capitães ficaram em face um do outro.
Então começou a luta. Cada um dos chefes usou da influência que tinha, e conseguiu grupar à roda de si uma parte da população da vila.
Heitor e Aquiles estavam prestes a vir às mãos.

III
A vila tinha um jornal, que servia aos dois chefes do único partido que havia antes. Denominava-se o Farol. Tinha um redator, amigo de ambos. Mas, com a dissensão passou a folha a ser de Tobias, que a fundara. Teles fundou logo outro jornal, denominado Atalaia.
Entretanto, o pobre redator do Farol, como o Tobias ficasse com a folha, foi despedido, por ser amigo de ambos os contendores.
Foi quem perdeu no joguinho.
Perdeu até certo ponto, porque dois meses depois, zangado com toda a história, fundou um jornal seu, ao qual deu por título O Azorrague.
De maneira que veio a vila a ganhar, ficando com três jornais, e mais a vida que lhe daria a luta da imprensa.
Azorrague combatia as outras duas folhas.
O primeiro número da Atalaia começava assim:

Entrando no campo da publicidade, a nossa missão é defender os verdadeiros interesses da vila, profligar os abusos, louvar as autoridades honestas e cumpridoras do seu dever.
Está claro que neste número não entra o famoso juiz de paz que há tanto tempo pesa sobre esta infeliz população, criatura desprezível, etc., etc.

O mesmo número trazia esta notícia:

O sr. subdelegado Teles continua no gozo de sua importante saúde. O seu filho Benjamim já se acha melhor da febre intermitente de que foi recentemente atacado. Fazemos votos pelo seu restabelecimento.

O seguinte número do Farol respondeu por estes termos:

Apareceu finalmente a folha do sr. Chico Teles. É um amontoado de tolices e infâmias, e mostra bem a pessoa que se lembrou de fundar tão imundo jornal. Quanto ao que diz a respeito do respeitável sr. Tobias, toda a população desta vila protesta.

O noticiário do Farol dizia o seguinte:

Temos a dor de anunciar que o honrado sr. juiz de paz Manoel Tobias indo ontem a passeio caiu do cavalo e contundiu um ombro. Foi logo medicado pelo honrado sr. dr. B. Desde então até à hora em que escrevemos, mais de cinquenta pessoas gradas têm visitado o ilustre juiz de paz.

A folha do Chico Teles não se pôde ter. Depois de responder ao artigo de fundo, em termos acres, disse na gazetilha:

Queríamos saber quais foram as pessoas gradas que têm visitado o sr. Tobias, depois que caiu do cavalo. A não serem o taberneiro Arruda, o picador Matias, e outros que tais, gente conhecida por toda a vila, não podemos saber quem seja.

Acudiu o Farol:

... Em todo o caso o sr. Tobias não foi visitado pelo sr. Chico Teles, cujo caráter desprezível arreda a toda a gente de bem.
A isto respondeu a Atalaia:

O sr. Teles não visita bêbados...

Estavam as coisas neste pé quando apareceu o Azorrague, redigido pelo sr. Anselmo, ex-redator do Farol. Eis a introdução:

No meio da comédia a que assiste a vila, desde que apareceu o Atalaia, e que se travou o tiroteio entre ela e o Farol, aparece hoje o Azorrague, disposto e dizer que tanto um como outro jornal são dois truões de força. Quem quiser rir dos srs. Teles e Tobias venham assinar esta folha, mas declaramos desde já que não somos folha de partido.

Ou fosse a franqueza da linguagem, ou simpatia que merecesse o sr. Anselmo, o certo é que o Azorrague adquiriu logo popularidade.

IV
Para bem encaminhar esta narração, é preciso fazer entrar novos personagens, aos quais está destinado um brilhante papel.
Teles tinha um filho a estudar em S. Paulo; Tobias tinha uma filha em casa, moça de seus vinte anos, bonita, viva, verdadeira flor da vila, onde aliás não escasseavam mulheres bonitas.
Criadas juntas as duas criaturas, tinha-se desenvolvido entre ambas um sentimento mais vivo e menos desinteressado que a simples afeição fraternal dos seus primeiros anos. O que é certo é que a designação de minha mulher — e meu marido — conservou-se até à idade adulta, entrando muito nos cálculos dos dois pais ligá-los realmente pelos laços matrimoniais.
O rapaz chamava-se Alfredo Teles; era, nem mais, nem menos, um homem inútil. Fiado na fortuna do pai, desajudado de talento, o filho do subdelegado descurou os estudos jurídicos, e só alcançou simples aprovação em todos os anos, isso mesmo pela influência de um dos lentes que contava com o auxílio eleitoral do pai do Alfredo.
A vida de Alfredo em S. Paulo era nula: folgava, passeava, gastava; não tinha uma ocupação séria e definida; vocação só se lhe conheço uma, e decidida, era a dos anagramas. Alfredo gastava horas inteiras a fazer anagramas, com a mesma atenção com que estudaria um ponto de direito. Fora disso, não prestava para nada, o que não quer dizer que prestasse para muito.
Pouco tempo depois do rompimento de hostilidades entre os dois potentados, concluiu Alfredo Teles os seus estudos e encaminhou-se para a vila.
Elisa, a filha do juiz de paz, não era águia, mas tinha alguma viveza, e neste ponto valia mais que o maridinho; gostava dele, pela razão de que muita gente gosta do amarelo. Amor sincero ou costume, o que é certo é que morria por ele. Assim que, quando se anunciou a próxima chegada do Alfredo à vila, Elisa mostrou-se toda garrida e festiva, e disposta a recebê-lo como dantes, apesar da luta dos pais, porque, dizia ela, o amor não entende de política.
Mas o juiz de paz pôs embargos à ligeireza. Chamou-a e disse-lhe que não pensasse mais em casar com o rapazola, que era tão bom como o pai; a moça rogou, mas em vão; o pai tapou-lhe a boca com a razão da sua vontade, e a pobre foi obrigada a calar-se.
Alfredo, estando a duas léguas da vila, parou em um pouso para refazer-se e descansar. Enquanto o camarada tratava dos animais, Alfredo conversava com um viajante que vinha da vila. O viajante pouco sabia do que lá se passava, porque apenas se demorara meia hora, mas, para divertir-se no caminho, tinha comprado o último número da Atalaia.
— É novo este jornal na vila, disse Alfredo.
— Parece que é; este é o número 6.
— Quem é o redator?
— Redator e proprietário é o sr. Francisco Teles.
— Meu pai! deixe ver.
Alfredo percorreu o jornal, deu logo com as seguintes linhas:
A vila de *** está contente com as suas finanças, com a sua lavoura, com o seu vigário, com os seus médicos, com o seu subdelegado, só não está com o 1º juiz de paz Manoel Tobias, eleito pela força das baionetas.
Alfredo não pôde deixar de sorrir-se ao ler isto; ele bem sabia que a eleição de Tobias foi a mesma que levantou Chico Teles, e que além disso, não podia ser feita por baionetas, visto que os poucos soldados que existiam na vila tinham apenas uns trabucos velhos.
Até aqui chegava o espírito de Alfredo, e por isso ele riu; mas o que ele não podia apreciar é que a acusação das baionetas era apenas uma figura de retórica eleitoral, usada sempre pelas facções vencidas.
Riu-se o rapazola, mas não deixou de espantar-se vendo assim desquitados os dois chefes da vila, e sobretudo lembrou-lhe a filha do juiz de paz de quem ia ficar separado à vista daquilo.
Chico Teles foi receber o filho, e dar-lhe os parabéns.
Tomou-lhe a clássica folha, em que ele levava o diploma de bacharel, e mandou que a mulher a guardasse em lugar de respeito.
Alfredo pediu-lhe explicações do que vira na Atalaia, e Chico Teles explicou-lhe tudo.
— Quanto à filha daquele pelintra, acrescentou o pai, não penses mais nela. Hás de ter mulher mais digna de ti. Tens por exemplo, a afilhada do padre vigário...
— Não, meu pai, não; nesse caso não me saco.
— Não me saco? Que quer isto dizer?
— Perdão, meu pai, é um anagrama: saco é anagrama de caso. Eu queria dizer não me caso.
E foi tirar as botas.
Cumpre acrescentar que o filho de Manoel Tobias, que estudava em S. Paulo, e devia tomar grau no mesmo dia que Alfredo, não pôde fazê-lo por ter tido um mau exame, o que lhe ocasionou tanto desgosto, que se resolveu a não aparecer ao pai.
Esse rapaz, que se chamava Luciano Tobias, era inteligente, mas preguiçoso; a reprovação ofendeu-lhe os brios, e ele não quis aparecer ao pai, senão regenerado.

V
Alfredo não ficou convencido com as palavras do pai; gostava da rapariga, e até faria por ela o sacrifício de renunciar aos anagramas; abandoná-la por uma divergência entre os pais, era coisa que ele não entendia. Entrou a pensar o que faria.
Entretanto, aproximava-se a festa da matriz; os leitores hão de lembrar-se que Chico Teles era o presidente da irmandade, e Manoel Tobias protetor perpétuo. Antes da festa haveria eleição da mesa, e foi esse o campo de uma grande batalha.
Infelizmente, Chico Teles só lutou pela defensiva; o cargo de Manoel Tobias não era sujeito à eleição; mas o seu era, e Tobias moveu toda a vila, para apeá-lo do cargo.
Oito dias antes, as folhas dos dois contendores começaram a agitar a questão. O Farol, de Manoel Tobias, começou por um artigo de fundo estirado e indigesto; o jornalista, querendo provar que Chico Teles não podia exercer o cargo que ocupava, viu-se obrigado a remontar aos gregos, e a descrever o ostracismo. A resposta de Chico aproveitou-se da alusão histórica, e lembrou que também Aristides fora desterrado, apesar de justo, mas que ele confiava no bom senso do povo da vila.
Três dias antes da eleição fervia tudo; circularam as chapas, umas verdes, outras amarelas; faziam-se visitas, e até as folhas adversárias deram suplementos todas as tardes, cheios de artigos coruscantes.
O sr. Anselmo aproveitou esta situação, e disse no Azorrague:

Parece que não é um presidente de irmandade que se vai eleger, mas um papa dos doidos, e a irmandade há de ver-se atrapalhada para escolher entre o Teles e o Tobias. O nosso conselho é que escolha ambos.

Enfim, raiou o dia.
Teles vestiu-se de ponto em branco, pôs a sua comenda, e encaminhou-se para a matriz; já lá estava Manoel Tobias, igualmente enfeitado; conversava com o padre vigário, mas via-se pelo olhar vago que ele não se preocupava muito com a reverendíssima conversa.
Chico Teles tinha arranjado de véspera uns vinte capangas, que se foram postar à porta da igreja para dar-lhe vivas, apenas ele assomasse. Assim aconteceu. Chico Teles fez-se muito comovido, e agradeceu com o chapéu aquela manifestação de popularidade.
Fez-se a eleição. Foi muito solene; Teles contava sair, e Tobias estava certo de derrotá-lo: o candidato apresentado por este era uma figura secundária, mas a sua influência dava-lhe valor.
Para vencer este pleito tinham ambos posto em prática os meios mais engenhosos; promessas, nomeações, e até hábitos de Cristo, tudo. Que luta! No fim de alguns minutos, porém, tudo estava acabado; Teles venceu, e estava presidente da irmandade por mais um ano.
Tobias saiu da sacristia, e não voltou, senão à hora do sermão, por pedido do padre vigário, que nesse dia impingia um pot-pourri de Bourdaloue e Antônio Vieira.
Teles deu um grande jantar a vários amigos, e festejou desse modo o seu triunfo.
No dia seguinte o Atalaia publicava uma longa narração da festa, e quanto à eleição do presidente dizia:

Apesar das cabalas e da torpeza de certo caturra desta vila, o sr. Francisco Teles foi reeleito presidente da irmandade de S. Francisco. Foi um verdadeiro triunfo. Nem podia deixar de ser assim. Quem possui a popularidade de tão distinto chefe não deve temer nunca.
Para prova de que o sr. Teles é o querido do povo basta ver como a opinião pública o recebeu à porta da igreja com vivas e aclamações.
Honra à população desta vila!

No dia em que saiu este artigo, os vinte capangas da véspera foram à casa de Chico receber um suplemento ao donativo que já lhes havia este fornecido. Quando os viu à porta, Alfredo que assistira à cena da véspera, e lera a folha do dia, foi correndo chamá-lo:
— Meu pai! meu pai! aí está a opinião pública.

VI
Manoel Tobias não podia sofrer impunemente a derrota. Retirou-se às suas tendas e entrou a refletir nos meios de tirar uma desforra tremenda, e aniquilar de uma vez o subdelegado Chico Teles.
Muitas lhe lembraram, mas Tobias, apesar do fervor em que estava, podia refletir no perigo de uma nova derrota, se o plano não fosse inteiramente eficaz.
Mortificava-o sobretudo a ideia de que ele, juiz de paz tão estimado do povo, pudesse ser vencido na ocasião da eleição da irmandade de S. Francisco. É verdade que nesse pleito não estavam empenhados os interesses políticos da vila; todavia, o bom juiz de paz assustou-se com a direção que iam tomando os espíritos, e meditou profundamente nas modificações da opinião pública.
O que lhe pareceu mais sensato, no fim de uma hora de reflexão, foi aguardar as eleições municipais e políticas que se deviam fazer naquele mesmo ano.
Entretanto não lhe pareceu desacertado lançar algumas sementes à terra, e começou enviando para o governo do Rio de Janeiro uma coleção do Farol, com os artigos que descompunham Chico Teles marcados a tinta vermelha.
O ministro recebeu os jornais, e sem abri-los, deu-os a um filho, que fez da prosa de Manoel Tobias chapéus armados e canudos.
Novo presidente foi tomar conta da província, e uma circular dirigida a todas as autoridades declarou-lhes que a administração nova seguiria os passos da primeira.
Quando a circular chegou às mãos de Manoel Tobias, conversava este com o padre vigário.
— É um novo presidente, disse Tobias.
— Safa! exclamou o vigário, é quase um por mês. Parece que o governo não tem outro fim senão dar às províncias o espetáculo de novas caras. E a política?
— É o status quo.
No dia seguinte as duas folhas adversárias harmonizavam-se num ponto: era em lançar às ventas do novo presidente o turíbulo da adulação.
Faltavam poucos meses, e o novo presidente, que fora apenas com o fim de presidir à manifestação da opinião pública, começou a ativar neste sentido as forças e as influências locais.
Manoel Tobias e Chico Teles foram contemplados no número dessas influências, e receberam ordens positivas da capital. A lista dos candidatos à deputação era toda definida; não se podia duvidar das opiniões dos futuros representantes; mas a verdade é que a vila não os conhecia.
Manoel Tobias, cuja autoridade nascia do voto popular, acatava, todavia, a influência do governo, era um homem do governo, destes de votar em lista fechada, ainda que vote contra si.
Chico Teles, porém, apesar do seu amor às ordens de cima, teve uma ideia infernal: a de dar de mate à influência de Tobias, substituindo o último nome da lista, por outro de sua escolha: desde que o seu candidato fosse eleito estava morto o Tobias.
O caso era arriscado, e o menos que lhe poderia acontecer era a demissão do cargo, depois de acabadas as eleições.
Mas Chico Teles fiava-se em duas coisas: primeiramente no tato com que arranjaria as coisas, de modo a saber-se tarde da sua traição; depois na influência que gozava na vila. A vitória da irmandade de S. Francisco tinha-lhe inchado muito os odres da vaidade, e o subdelegado já se dava ares de Júpiter Tonante.
Quem seria o candidato? Aqui estava a dificuldade. Chico Teles não queria abrir-se com qualquer dos homens principais do lugar, sem estar certo do ocorrido. Teve uma ideia: convidar o sr. Anselmo, redator do Azorrague, para uma liga da qual resultaria vencer a chapa governista, e dar baque à influência de Tobias.
Foi, com efeito, à casa do jornalista.
— V. S. por aqui?! exclamou o sr. Anselmo.
— É verdade, meu caro, apesar das nossas dissidências. Venho propor-lhe uma liga.
— Uma liga! para quê?
— Promete que, no caso mesmo em que não aceite a proposta, nada revelará?
— Prometo.
— Pois bem. É chegada a ocasião de dar baque ao Tobias. A vila não pode continuar mais a suportar um ente nulo, desprovido dos recursos intelectuais, sem amor ao bem público, antítese do cargo que lhe conferiu o voto popular...
Chico Teles, sem querer, estava repetindo o artigo que na véspera publicara na Atalaia, o que fez sorrir o sr. Anselmo.
— Mas, enfim, que quer V. S.?
— É simples: quer o senhor ser deputado?
— Eu?
— Sim, é meu candidato; eu suprimo o último nome da lista mandada pelo presidente, e faço elegê-lo. Quer?
— Não posso, sr. Teles; eu não me ligo, nem a V. S. nem ao juiz de paz. Eu estou só, e não ambiciono cargo algum na república.
— Mas eu não lhe falo em república... Não é uma revolução o que quero fazer...
O sr. Anselmo sorriu.
Nisto entrava um tipógrafo com provas do Azorrague, para o sr. Anselmo.
— Olhe, disse este, veja se eu posso ligar-me a algum dos senhores. Eis o que eu digo de ambos amanhã:

A vila vai naturalmente gozar de um espetáculo raro e de graça: é a luta eleitoral entre os srs. Teles e Tobias. Já na irmandade de S. Francisco deu-se uma amostra do que podem valer estes dois indivíduos; mas agora há de ser melhor. Ora, a população e o governo podem praticar um ato edificante e patriótico: é mandar passear os dois contendores...
O sr. Anselmo ainda lia, e já Chico Teles batia longe, fulo de raiva.

VII
Chegando à casa Chico Teles começou a refletir; estava desarmado; dali em diante o sr. Anselmo podia atacá-lo por todos os modos; ele não podia responder...
Entretanto, era preciso a todo o custo achar um candidato; Chico Teles continuou a trabalhar para descobri-lo, até que bate com a mão na testa, exclamando:
— Achei!
Mandou chamar Alfredo, e disse-lhe:
— Meu filho, vou propor-te uma ideia grandiosa.
— Fale meu pai.
— Quais são as tuas ambições?
— Casar-me com a filha do Tobias.
— Mau! já te disse que não olhes para ali. Ligar-me eu a um Tobias, não faltava mais nada! — Mas o que eu te pergunto é se não tens aspirações políticas?
— Isso...
— Tens, deves ter.
— Por que pergunta? disse Alfredo com algum interesse.
— Queres ser deputado?
— Deputado!
— Geral. — Queres ir ao Rio de Janeiro, falar da tribuna, interpelar os ministros, deitá-los abaixo e quem sabe? ser tu mesmo conselheiro da coroa?
— Mas como?
— Já te vás interessando. Como? É facílimo. Queres?
— Quero, decerto.
— Pois conta com o diploma.
E Teles entrou a explicar ao filho o seu pensamento, pedindo-lhe o maior segredo. O plano assentado foi que Alfredo se apresentaria candidato, ao passo que o pai defenderia a lista vinda do presidente, parecendo assim achar-se em oposição ao filho; isto era apenas para iludir o presidente e o ministério, até depois da eleição. O essencial era que as personagens da vila soubessem do caso, a fim de ter a derrota de Tobias todo o valor.
Alfredo era tão vaidoso quanto seu pai; aceitou a candidatura, parecendo-lhe até que esse seria um meio fácil de se aproximar da filha do Tobias.
— Desde que eu for deputado, o juiz de paz abate as bandeiras e eu caso-me...
As eleições estavam próximas. Os candidatos começavam a aparecer e a visitar as influências; formaram-se as listas de eleitores, e cada um dos dois contendores fez a sua, escrevendo para o presidente que respondia pelos homens escolhidos. O único que entrara em ambas era o padre vigário. Este vigário vivia em paz no meio do temporal, graças ao sistema que adotara de jantar alternativamente com os dois heróis, aos quais distribuía exortações de paz e de concórdia.
Que fez, porém, o sr. Anselmo? A proposta de Chico Tobias abriu-lhe os olhos. Por que não seria ele candidato? A sua folha tinha influência, era a de maior circulação. Os jornais do Rio de Janeiro tinham mesmo transcrito alguns dos seus artigos. Ele não tinha compromissos oficiais; era independente. Resolveu, pois, ser candidato e furar a chapa ministerial.
Assim ficaram as coisas, quanto às eleições políticas.
Restavam, porém, as eleições municipais, e Teles viu desde logo que havia a maior vantagem em dar esse primeiro golpe, o mais importante de todos, em Manoel Tobias; Manoel Tobias por seu lado compreendeu que da primeira batalha dependia a sua influência na vila, e reuniu todas as suas forças.
Quando faltavam quinze dias apenas para as eleições municipais, a vila tomou um novo aspecto: era tudo eleição. Rolava o dinheiro, choviam os empenhos, as folhas saíam recheadas de louvores e invectivas. Reunião e banquetes não faltavam. Era uma confusão.
Surgiu finalmente o dia da eleição.
Nessa manhã dizia o Farol:

Hoje a vila de *** vai mostrar se possui ou não as virtudes do amor e da gratidão. O benemérito sr. Manoel Tobias, juiz de paz há tantos anos, amigo do povo, levantado pela opinião pública, caráter verdadeiramente romano, adoçado pelas mais puras virtudes patriarcais, apresenta-se de novo ao povo para lhe pedir o batismo eleitoral.
Nenhuma compressão, nenhuma influência indébita será exercida contra o votante; fica-lhe livre o voto, mas se ele quer que o voto seja digno é votar no ilustrado e integérrimo juiz de paz.
Votantes, às urnas! às urnas!

Chico Teles não se descuidara de imprimir um contra-veneno, e disse na Atalaia desse dia:

Depois de uma opressão de longos anos, apresenta-se hoje aos votantes desta vila uma nova lista para juízes de paz.
Votar nessa lista, e dar derrota à lista contrária, é decretar e felicidade do povo, é mostrar que desde 1789 caíram os tiranos, e que as cabeças fumantes dos déspotas são as lições das populações que se prezam.
O desprezível Manoel Tobias não pode continuar a dominar esta vila, e os homens livres devem protestar contra ele, apeando-o do cargo.

Um lavrador, que era assinante das duas folhas, leu os dois artigos, e disse para a mulher:
— Ó Teodora, em quem devo votar? Um diz que vote no sr. comendador Tobias, outro diz que não. Que devo fazer?
— Antônio, o melhor é não te meteres nisso...
— Mas eu devo votar...
— Então vota em ti.
— Dizes bem, mulher. Em mim, no Antônio, no Arruda, e no Ezequiel.
— Aí está.
Fez-se a eleição, e ambos tiveram vitória. Como? A chapa de Tobias venceu por um voto.
Nenhum deles ficou contente.
Tobias não pôde mesmo assistir à vitória; quando se ia ler a última cédula, que era a decisiva, o juiz de paz desmaiou.

VIII
O filho de Chico Teles andava todo cheio com a eleição. Já se estava a se ver na câmara, diante das galerias apinhadas, e dominando com o olhar o ministério assustado e receoso de si.
Esta perspectiva política fez apagar muito a imagem da filha do Tobias; e a pobre menina, que até então se carteava com o candidato, às ocultas, começou a duvidar do amor dele, desde que as missivas começaram a rarear.
Ato contínuo, teve uma febre intermitente.
O médico chamado a ver a doente, ou porque soubesse do fato, ou porque tivesse a ciência de adivinhar, o certo é que declarou ao juiz de paz que o verdadeiro motivo da moléstia da moça era o amor por Alfredo.
— E nesse caso, disse o médico, julgo melhor casá-los.
— Não! não! clamou Tobias, atirando com os óculos pela janela fora, isso nunca! Há de haver algum remédio em substituição a esse.
— Paliativos, disse o médico.
— Casar com ele é unir minha família à daquele biltre! O que não haviam de dizer os meus correligionários políticos?
— Deixe-se disso, sr. Tobias. Os seus correligionários não têm direito a impedir que o senhor case sua filha.
— Mas a honra do partido!
— Qual, partido!
— Cale a boca, doutor! Lembre-se de que eu tenho uma folha, e posso...
— Uma folha de que eu sou assinante.
Tobias que já contava ameaçar o médico, ficou macio quando este lhe lembrou a circunstância da assinatura, e foi pouco e pouco moderando o seu ardor político.
A conversa morreu sem que Tobias tomasse decisão alguma.
Entretanto, de um lado, e do outro, ativavam-se os elementos para a grande batalha campal da eleição.
Teles tinha um irmão rico, cuja fazenda distava dez léguas da vila; escreveu-lhe pedindo uma remessa de dinheiro para auxiliar a liberdade do voto.
Alfredo lembrou-se de ter lido alguma coisa a respeito de meetings ingleses, e disse ao pai que era um excelente meio de consolidar a sua candidatura. O pai aceitou a ideia; mas para que não arguissem de cumplicidade nesse fato, Teles retirou-se da vila durante dois dias, e deu assim tempo a que o filho pudesse pôr em prática o meio eleitoral.
Não custou pouco ao rapaz reunir gente para o meeting, mas afinal conseguiu. O local era o largo da matriz. Uma espécie de tribuna erguia-se no centro da praça, e era o lugar destinado ao orador.
Algumas velhas, vendo o aparato do largo da matriz tiveram a indiscrição de perguntar se havia nesse dia teatro de bonecos. Responderam-lhes que era uma sessão preparatória de eleição.
Chegou o dia aprazado; os vereadores e algumas outras autoridades assistiram ao meeting; os curiosos eram em grande número.
Alfredo foi o único orador.
— Meus senhores, disse ele do alto da tribuna; dentro de poucos dias tem de haver a eleição de deputado; eu apresento-me candidato a um dos lugares da lista. Bem sei que o voto agora restringe-se aos eleitores, e que vós, povo, não tendes mais o direito de votar: mas o que eu peço, é que a alta consciência dos eleitores seja um tanto influenciada pela voz da opinião pública que é a senhora do universo. É a ti, opinião pública, que eu me dirijo, é aos teus pés que eu deponho os meus poucos méritos, é de ti que eu desejo o batismo.
— O batismo! rosnou o barbeiro da vila; parece que o sr. Teles esqueceu-se de mandar o filho à pia...
O orador desceu, entretanto, os degraus da tribuna, no meio de alguns vivas, soltados por dois ou três capangas, anteriormente pagos.
O povo ficou ainda algum tempo a esperar por mais, até que veio a noite, e cada um foi para casa, com a cara à banda.
Alfredo também se retirava, quando um moleque se chegou a ele, e entregou-lhe o seguinte bilhete:
Alfredo, se me amas, vem buscar-me, fujamos hoje mesmo; apesar de doente, irei contigo; se não vieres, mato-me.
O bilhete era da filha de Tobias. Alfredo franziu a testa, e releu o bilhete. Embora não tivesse já os primeiros ardores pela moça, todavia ainda gostava dela, e a ideia de uma catástrofe devia impressioná-lo.
No meio das suas glórias eleitorais, vinha o amor aguar-lhe o prazer — Que idiota! — Quantos há que por um amor sincero, ardente, puro, dariam eleições, câmaras, ministérios, e tudo!
Alfredo foi para casa, e gastou a noite em meditar no que devia fazer. Depois de muito tempo mandou à namorada o seguinte bilhete:
Tente bem, se o mamão...
A moça leu espantada este bilhete; não compreendia o que era; mas de repente uma triste ideia a assaltou.
— Se Alfredo estivesse louco!...
Nisto teve um desmaio. Quando deu acordo de si, estava nos braços do pai, a quem confessou tudo, para poder contar os seus tristes receios.
Tobias ralhou com a filha, mas lá se alegrou no interior por ver doido o candidato, tanto que no dia seguinte lia-se a seguinte notícia no Farol:

Afirmam-nos que se acha atacado de alienação mental o sr. Alfredo Teles. Este jovem merecia as simpatias das pessoas sensatas da vila, apesar do pai.

Nessa manhã venderam-se mais vinte exemplares do Farol, e a notícia chegou até o lugar onde se achava Chico Teles, que amarrotou o jornal, e veio para a vila disposto a deitar tudo abaixo.
Pobre Alfredo! O que ele queria dizer era entretanto simples. O hábito do anagrama foi a causa daquilo. Ele queria dizer:
Não te mates meu bem.
E escreveu:
Tente bem, se o mamão...
Até onde vai um mau costume!

IX
Antes da chegada de Chico Teles à vila, já Alfredo tinha feito das suas. O artigo do Farol pô-lo tonto. Amarrotou o jornal e jurou vingar-se do indigno redator; mas de todos os meios que lhe ocorreram, nenhum lhe quadrou. Estava nessa indecisão quando Chico Teles chegou.
O subdelegado entrou em casa furioso.
— É indigno! é infame! exclamou ele.
— É infame! é indigno! respondia Alfredo, como um eco.
Acalmados os primeiros furores, entraram ambos na apreciação do artigo de Manoel Tobias. Ignorando a causa do artigo, o pai e o filho julgaram logicamente que Manoel Tobias aludia ao meeting.
Depois de muitas horas de reflexão e discussão, assentaram em não dizer palavra na Atalaia, a respeito do artigo do Farol, e guardar a vingança para a eleição que estava próxima.
— Sim, dizia Chico Teles, fia-te em mim: demos àquele miserável a melhor resposta possível, que é a de uma derrota para sempre; havemos de mostrar-lhe que o seu partido nada vale. Envidemos os nossos esforços e matemos o bicho...
— Sim, matemos o bicho, disse Alfredo pondo aguardente em dois copos e oferecendo um ao pai.
Chico Teles olhou admirado para o filho, e esvaziou um trago.
Entretanto a filha de Tobias continuava inconsolável. A ideia de que o seu amante estava doido era coisa que a não consolava; a rapariga tinha um fraco pelo rapaz, e contava vencer as dificuldades para unir-se a ele. Tudo porém, quanto imaginara caiu diante daquele desastre.
Manoel Tobias contava com uma resposta da parte da Atalaia, e ficou admirado de não ver nada no dia seguinte.
Respondeu-lhe porém, o Azorrague. Disse esta folha:

Farol disse ontem que o sr. Alfredo Teles estava doido, fazendo assim crer que ele teve juízo algum dia...

Tobias leu até aqui com um sorriso nos lábios; mas caiu-lhe o queixo quando leu o resto, que dizia assim:

... Sim, tanto ele como o sr. Chico Teles e o sr. Manoel Tobias são três famosos malucos!

É inútil dizer que os dois adversários ficaram furiosos com este artigo.
Entretanto Alfredo Teles, estando a folhear uns papéis, deu com uma tira em que achou o primeiro borrão do anagrama que mandara à filha do Tobias; riu-se, e mandou-lhe um bilhete, explicando-lhe o caso.
A pobre moça quase morreu de alegria, e foi dizer ao pai que Alfredo não estava doido; Manoel Tobias pediu explicação do fato. Deu-lha a rapariga, e o pai fez proscrever de casa pena e papel. A filha jurou consigo que havia de sair daquele cativeiro.
Os dias corriam, a candidatura de Alfredo ia tomando certo corpo, e mais ainda a do redator do Azorrague, que tinha as simpatias da vila.
Finalmente chegou-se à véspera da eleição. Foi essa uma noite de trabalho insano, em todos os campos litigantes. Prepararam-se artigos ardentes, e fez-se provisão de manjares para regalar os estômagos da soberania nacional.
Às 11 horas da noite, retirou-se Alfredo para o seu quarto que dava para o terreiro da chácara, e preparava-se para descansar e levantar-se mais fresco no dia seguinte quando sentiu que lhe batiam à janela. Espantou-se daquilo e foi buscar um revólver, e abriu a janela... Céus! que viu ele! — A filha de Tobias, montada em um cavalo branco, com uma trouxa na garupa e os cabelos desgrenhados.
— Que é isto?
— Fujo ao desespero! Venho buscá-lo para sairmos daqui.
— Mas, entre, entre...
— Não! não entro... E a minha honra? — Saia você, traga um pajem, e vamos para a fazenda de minha tia, que é daqui a uma légua; ela está à nossa espera; lá nos casaremos, e voltaremos depois para pedir perdão a nossos pais.
— Mas, meu anjo...
— Assim é preciso... quando não, vou atirar-me ao rio!
Alfredo compreendeu que não podia lutar com a moça; fechou um pouco a janela, vestiu-se, chamou o pajem, por quem mandou aprontar os animais, e depois de lançar um olhar de saudade para a cama, dirigiu-se para o terreiro.
Já lá estava o pajem com os animais. Seguiram todos para a fazenda, onde a moça ficou, voltando Alfredo para a vila, onde chegou às duas horas da manhã.
No dia seguinte, que era o da eleição, Alfredo levantou-se ao ouvir esta apóstrofe do pai:
— Pois quê! meu tratante! dormes até às 9 horas num dia de eleição, e quando se vai decidir do teu futuro político! Levanta-te, mandrião.
Alfredo demorou-se ainda na cama, o tempo preciso para ver se podia fazer da palavra mandrião um anagrama, mas não atinava, e pôs-se de pé.
Almoçaram e foram para a câmara municipal, acompanhados de alguns eleitores mais íntimos.
Alfredo ia trêmulo com a lembrança do que lhe acontecera na véspera, e temendo receber de algum capanga uma sova intempestiva. À porta da câmara municipal estava Manoel Tobias, risonho e tranquilo, o que fez impressão no espírito de Alfredo. Tobias ouvia a alguns eleitores, acerca das probabilidades da eleição, e passava as suas cédulas muito honradamente.
Entretanto aproximava-se a hora do combate. Tobias foi tomar conta da presidência da mesa.
— Então o que há? perguntava Chico Teles, a um eleitor enquanto Alfredo corria diversos grupos.
— Tudo vai bem...
— Acha que meu filho pode...
— Se pode! Eu conto com grande maioria...
— Ah! Deus o queira.
E Chico Teles foi ter com outro eleitor.
Quanto ao eleitor que acabava de animá-lo, apenas Teles se retirou, aproximou-se de um capanga de Tobias e disse: — Então? Os cavalos? — Já estão em sua casa. —Quatro. — Bem; dê cá a lista; afirme que eu votei contra o Alfredo.

X
A casa da câmara regurgitava de povo, oferecendo um espetáculo único — um espetáculo eleitoral.
No centro estavam a mesa e a urna, com os mesários à roda, e o presidente à cabeceira. A urna, a duvidosa vestal política destes tempos, estava ainda fechada com os sete selos do apocalipse.
Era um falatório geral; grupos de um lado e de outro discutiam a eleição, trocavam listas, riscavam nomes, tomavam notas; daqui engendrava-se um protesto, dali imaginava-se um distúrbio, no caso de perda da eleição. Era um caos. Finalmente começou a chamada, e os eleitores foram paulatinamente deitando na urna as suas cédulas.
O sr. Anselmo, apesar de ser o mais sério de todos os candidatos, nem por isso deixava de apresentar a feição característica daquelas ocasiões, e cabalava como qualquer dos outros; dizia-se que ele seria eleito, mas ninguém ousava afirmar que Alfredo Teles deixaria de sê-lo igualmente, e nesta esperança se consolava o filho do subdelegado.
Recolhidas as cédulas, começou o trabalho da apuração. Venceu a chapa do governo, exceto em um dos nomes, que foi substituído pelo do sr. Anselmo.
Alfredo Teles saiu suplente em décimo lugar.

A lista vencedora foi esta:
Luís Barreto (primo do presidente da província).... 69 votos.
Antônio Barreto (afilhado de crisma do ministro do Império).... 67 votos.
Pantaleão Soares (oficial de uma secretaria no Rio de Janeiro) .... 59 votos.
Pedro Mota (credor de dois ministros).... 59 votos.
José Batista (ex-adversário do governo).... 58 votos.
Honório Bandeira (cunhado de um oficial maior).... 58 votos.
Jerônimo Gouvêa (primo de um cunhado da mulher do chefe de polícia da província).... 57 votos.
Anselmo (redator do Azorrague).... 56 votos.
Caio Barroso (filho do general das armas).... 55 votos.

Quando este resultado foi proclamado, houve uma gritaria geral. Alfredo Teles, ajudado pelo pai, queria turvar águas, e tinham já dado de olho a alguns capangas, para agredirem a mesa, destruírem as listas e os papéis todos, talvez mesmo o presidente, e anular deste modo a eleição.
Quos vult perdere Jupiter dementat. Chico Teles estava azafamado, passava a palavra aos capangas, e já ia começar a barafunda, quando um oficial de polícia, às ordens de Tobias, pôs-lhe a mão em cima, e foi levá-lo à presença do adversário.
Quando Manoel Tobias viu diante de si o famoso Chico Teles, fulo de raiva e de humilhação, não pôde conter um sorriso de satisfação. O oficial expôs-lhe o caso, Chico Teles protestou, dirigindo algumas palavras injuriosas ao juiz de paz. Este levantou-se com o lábio trêmulo, e gritou:
— Levem-no para a cadeia!
A estas palavras levantou-se uma grita horrenda: protestos, reclamações, vivas, morras, tudo isso temperado por alguns sopapos anônimos e cachações invisíveis.
Mas Tobias persistiu na sua ordem, e Chico Teles saiu dali para a cadeia, gritando contra os abusos de autoridade, a ira dos tiranos, e a imolação dos direitos e liberdades, palavras todas que os prelos da Atalaia já estavam cansados de imprimir.
Alfredo Teles fazia coro com o pai.
Tobias saiu triunfante e dirigiu-se para casa no meio de uma ovação.
Mas, ai! lá o esperavam grandes dores.
Elisa Tobias, como os leitores da Semana sabem, tinha sido raptada, na véspera, por Alfredo Teles, e dera ordem a um escravo de nada dizer a seu pai, senão depois da eleição. Quando Manoel Tobias chegou à casa achou tudo em alvoroço.
— A menina desapareceu, diziam todos.
Tobias caiu em uma cadeira.
Tinha achado a rocha Tarpéia ao lado do Capitólio.
Entretanto, convinha obrar e não lamentar-se. Manoel Tobias indagou da hora em que se dera o desaparecimento, e como era natural, atribuiu a Alfredo a cumplicidade do fato.
Quis mandar buscar o rapaz debaixo de vara; mas ocorreu-lhe que já entrara muito pela via do arbítrio, e resolveu-se ir ele próprio falar ao filho do seu contendor.
Alfredo estava em casa, e preparava um artigo furibundo para a Atalaia, cuja redação em chefe assumiu, quando lhe anunciaram a visita de Manoel Tobias. Mandou-o entrar.
— Que me quer V. S.? disse ele apenas viu o juiz de paz.
— Venho saber o que é feito de minha filha?
— Não sei.
— Não sabe! Mas eu sei... Há de dizer-me onde ela está, ou eu mando-o fazer companhia a seu pai na cadeia.
Estas últimas palavras foram um raio de luz para Alfredo Teles.
— Eu sei onde ela está.
— Ah! sim! Onde é?
— Oh! isso não! Ela por ele: a filha pelo pai; entrego-lhe Elisa, mas V. S. há de passar já já o mandado de soltura do sr. Chico Teles, meu pai.
— Mas isso!...
— É se quiser.

XI
Tobias estremecia a filha; quis resistir, mas não pôde. Passou ordem de soltar Chico Teles, mas guardou-a no bolso, à espera da declaração de Alfredo. Este foi leal e disse onde se achava a moça. Tobias entregou o papel ao rapaz.
Nisto entrou um rapaz trazendo café. Alfredo ofereceu uma xícara a Tobias, que aceitou; saborearam o moca conversando tranquilamente.
Não pareciam já os adversários da véspera.
Finalmente, Tobias saiu para ir buscar a filha, e Alfredo para ir buscar o pai.
Uma vez solto, Chico Teles voltou para casa, encerrou-se nos seus aposentos e entrou a ver por que meios estrondosos tiraria a sua desforra. Lembrou-lhe um: fazer um relatório circunstanciado das últimas ocorrências, assinado por grande número de pessoas e mandá-lo ao ministério.
Entretanto Manoel Tobias foi à fazenda de sua irmã, onde se achava Elisa. A moça, quando viu o pai, enfiou; este declarou positivamente que ela voltaria para casa; a tia protestou; Tobias gritou; Elisa, depois de ouvir tudo, tomou a palavra, e disse estar disposta a não ir para casa senão casada com Alfredo Teles.
Debalde Manoel Tobias desenvolvia a sua lógica, para mostrar as inconveniências políticas de semelhante casamento; Elisa persistia nos seus propósitos, acrescentando que, no caso de não casar com Alfredo, possuía um meio fácil e rápido de terminar a existência.
Manoel Tobias saiu desesperado.
Chegando à casa, escreveu carta sobre carta, fez circular o boato de que estava doente: mas a nada disso movia-se a filha — até que o pobre juiz de paz mandou um recado a Alfredo, dizendo que lhe fosse falar.
Quem recebeu o recado foi Chico Teles, que respondeu negativamente ao portador.
A esse tempo, porém, Elisa, que não dormia, tinha escrito ao namorado, e desde a véspera que este se achava na fazenda.
Elisa, de acordo com a tia, e o capelão da fazenda, tinha organizado um plano do casamento, que foi submetido a Alfredo, e aprovado por este. O pobre Alfredo, desenganado da política, voltava às suas primeiras ilusões: todo o amor, que sentia por Elisa, reaparecera, e já era impossível ter mão nos dois amantes. A prova de que Alfredo sentia-se feliz é que fazia, termo médio, cinco a seis anagramas por dia.
Fez-se o casamento na fazenda, na ausência dos pais.
Entretanto o Farol, redigido por Manoel Tobias, tinha interrompido a publicação, e os assinantes começaram a reclamar; a Atalaia tirava partido da situação do adversário, e perguntava por que motivo, depois da sua vitória, não dava sinal de si o juiz de paz.
Uma manhã, porém, estava Manoel Tobias em casa, triste e aflito, a ver como lhe voltaria a filha, quando aparece aos seus olhos o filho de Chico Teles.
— Que me quer o senhor?
Alfredo lança-se-lhe aos pés.
— O seu perdão!
— Por quê?
— Sou seu genro.
— Meu genro! Mas como, senhor? Sem meu consentimento?...
— É por isso que lhe peço perdão; eu não podia resistir ao amor por D. Elisa, nem ela por mim, e resolveu-se casar, esperando da sua inesgotável bondade um perdão às nossas culpas!
— Levante-se, senhor!
— Oh! obrigado!
— Mas onde está ela? Na fazenda?
— Não; está na vila; quer ir vê-la?
— Vamos.
Alfredo e Tobias adversários dias antes, saíram assim de braço, causando espanto a todos quanto passavam e os viam tão congraçados.
Entretanto à mesma hora em que Alfredo entrava em casa de Tobias, Elisa entrava em casa de Chico Teles, e caía-lhe aos pés.
— Que é isso, menina? perguntou Chico Teles.
— Quero o seu perdão.
— Por quê?
— Promete que nos perdoará...?
— Nos perdoará?... Então?
— Eu sou sua nora.
— Essa!...
— Mas perdoe-nos; o mal, se isto é mal, está feito! vamos perdoe!
— Perdoo, sim; boa menina... Você sempre vale mais do que seu pai...
— Oh!...
— Onde está o Alfredo?
— Aqui perto; vamos lá; dê-me o seu braço...
Chico Teles, saiu, dando o braço à nora.
Estas cenas simultâneas, arranjadas pelos dois recém-casados, deviam ser seguidas de outra, tendo por teatro o largo da matriz.
Ali com efeito apareceram, de pontos diversos os dois pais; Teles e Tobias enfiaram, mas caminharam sempre até formarem um só grupo.
Aí Teles abraçou o filho, Elisa o pai.
Depois, os dois casados abraçaram-se; os dois pais com ar suficientemente esquerdo, assoviavam e olhavam para o céu.
— Então que fazem? perguntou Elisa. Vamos, um aperto de mão... Reconciliem-se...
Os dois velhos recusaram; mas tais eram as instâncias, tanto pediam, que não tiveram remédio, e as mãos dos dois adversários confundiram-se num aperto significativo.
Dali foram para casa de Chico Teles, que deu um jantar aos noivos, convidando para isso as primeiras autoridades do lugar.
Mas nem tudo são flores. Estavam à sobremesa, alegres e felizes, no meio das saúdes e protestos de amizade, quando o correio entregou um ofício a cada um dos velhos.
Era o presidente da província que, depois de um histórico dos fatos anteriores, mandava demitir Chico Teles, e suspendia Manoel Tobias.
Caiu-lhes o queixo; e esta desgraça súbita foi o que tornou então indissolúveis os laços da amizade.
É assim que termina a história do subdelegado Chico Teles e do juiz de paz Manoel Tobias.
FIM


COMENTÁRIO

Em se tratando de descobrir sobre Machado de Assis e sua obra, mais vale ler do que não ler.

Digo isso porque tenho comigo que não posso desperdiçar meu parco tempo livre com leituras diversas, tidas como obrigatórias pra mim no campo da política ou das chamadas leituras engajadas.

O tempo vai passando, o corpo morrendo e eu vou ficando sem cumprir minha lista de desejos literários em nome das obrigações sociais em que me enfiei.

O conto não tem nada de excepcional, mas distraiu-me nesta manhã de feriado nacional – proclamação da república brasileira -.