domingo, 25 de março de 2012

InFormação Política COM os trabalhadores da BASE



REFEIÇÃO CULTURAL 88

Tenho um diário (ou hebdomadário) já faz alguns anos. Socializo aqui minhas reflexões de hoje.


Osasco, domingo, 25 de março de 2012.


DESCANSAR OU LER? Ler ou escrever?


Meu cérebro está a mil, pensando em soluções para o movimento sindical ao qual pertenço.


Apesar do cansaço, cheguei ontem à noite da visita ao meu tio que estava internado e ao meu querido pai que está em São Paulo nesta semana e fiquei até de madrugada pensando e desenhando um projeto de trabalho de base sindical.


Nós sindicalistas precisamos dar um salto de qualidade na Organização nos Locais de Trabalho de maneira que se haja politização das pessoas ao longo do tempo.


Lembremos Paulo Freire que nos ensinava que EDUCAÇÃO É UM PROCESSO PERMANENTE COMO PRÁTICA DE LIBERDADE.


Nós precisamos transformar a realidade absurda em que nos encontramos no que diz respeito à pouca participação dos trabalhadores nos movimentos sociais e reivindicatórios.


Para mudar essa realidade é preciso que as pessoas se vejam como parte de um projeto, que haja espírito de pertencimento nos objetivos que se queira alcançar coletivamente.


O projeto de politização e OLT que estou montando só terá sentido e eficácia se houver muita transpiração e foco no objetivo: CONSCIENTIZAR AS PESSOAS A VIVER O DIA A DIA DO SINDICATO.


É isso!




Agora, falando um pouco da vida e de minha psique, digo que felizmente estão sobrevivendo meu pai, minha mãe, avozinha e famílias minhas.


Tenho congresso da Contraf-CUT na semana que se inicia e ainda não é possível afirmar que estarei na próxima gestão (porque formação de chapa é assim mesmo até o último minuto).


Minha saúde não está das melhores. Pouca atividade física, muito estresse e trabalho e má alimentação pesam nisso.


O desespero por não conseguir ler está me fazendo achar de qualquer maneira instantes dos dias para sorver algum alimento cultural. Leio no trem; acordo cedo no domingo mesmo cansadíssimo para ler um pouco; tomo guaraná em pó para ficar em pé.


Meu filho está crescendo e me assusta ver essa geração que pouco pensa, vive no automático com a cara grudada em telas de jogos e mundo virtual.


Como tudo são escolhas, a manhã do domingo está acabando e pela ebulição de meu cérebro só foi possível PENSAR e ESCREVER. Meu foco está em achar soluções para o TRABALHO SINDICAL DE BASE.


NÃO LI.


(Diário do leitor que não conseguia ler)

quinta-feira, 22 de março de 2012

DO ESTADO - O LEVIATÃ de HOBBES

Thomas Hobbes.


OBSERVAÇÃO INICIAL

Vencida a primeira parte de O LEVIATÃ, obra maior de Thomas Hobbes, parte esta que versou a respeito - "DO HOMEM" -, comecei a leitura da parte relativa ao Estado.

O primeiro capítulo é muito bom porque dá um apanhado geral do que vimos na primeira parte em relação ao que Hobbes chama de "LEIS DE NATUREZA" e do porquê é necessário se constituir um Estado civil para que os homens possam viver em sociedade e tenham um árbitro que faça valer os pactos feitos pela coletividade.

Pactos esses que equivalem à cessão de parte dos direitos que cada indivíduo tem em relação a serem livres para fazer e querer qualquer coisa para si, mesmo as coisas dos outros indivíduos - o que nos leva naturalmente por nossa LIBERDADE a uma CONDIÇÃO PERMANENTE DE GUERRA.

Como o capítulo não é grande, segue abaixo a leitura atenta dele com algumas marcações do que achei interessante, marcações como negritos, sublinhados etc.


CAPÍTULO XVII


DAS CAUSAS, GERAÇÃO E DEFINIÇÃO DE UM ESTADO


O FIM ÚLTIMO, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a consequência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza que foram expostas nos capítulos décimo quarto e décimo quinto.


Porque as leis de natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façampor si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar a menor segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros. Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-se e espoliar-se uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima, e tão longe de ser considerada contrária à lei de natureza que quanto maior era a espoliação conseguida maior era a honra adquirida. Nesse tempo os homens tinham como únicas leis as leis da honra, ou seja, evitar a crueldade, isto é, deixar aos outros suas vidas e seus instrumentos de trabalho. Tal como então faziam as pequenas famílias, assim também fazem hoje as cidades e os reinos, que não são mais do que famílias maiores, para sua própria segurança ampliando seus domínios e, sob qualquer pretexto de perigo, de medo de invasão ou assistência que pode ser prestada aos invasores, legitimamente procuram o mais possível subjugar ou enfraquecer seus vizinhos, por meio da força ostensiva e de artifícios secretos, por falta de qualquer outra segurança, e em épocas futuras por tal são recordadas com honra.


Não é a união de um pequeno número de homens que é capaz de oferecer essa segurança, porque quando os números são pequenos basta um pequeno aumento de um ou outro lado para tornar a vantagem da força suficientemente grande para garantir a vitória, constituindo portanto tal aumento um incitamento à invasão. A multidão que pode ser considerada suficiente para garantir nossa segurança não pode ser definida por um número exato, mas apenas por comparação  com o inimigo que tememos, e é suficiente quando a superioridade do inimigo não é de importância tão visível e manifesta que baste para garantir a vitória, incitando-o a tomar a iniciativa da guerra.


Mesmo que haja uma grande multidão, se as ações de cada um dos que a compõem forem determinadas segundo o juízo individual e os apetites individuais de cada um, não poderá esperar-se que ela seja capaz de dar defesa e proteção a ninguém, seja contra o inimigo comum, seja contra as injúrias feitas uns aos outros. Porque divergindo em opinião quanto ao melhor uso e aplicação de sua força, em vez de se ajudarem só se atrapalham uns aos outros, e devido a essa oposição mútua reduzem a nada sua força. E devido a tal não apenas facilmente serão subjugados por um pequeno número que se haja posto de acordo, mas além disso, mesmo sem haver inimigo comum, facilmente farão guerra uns aos outros, por causa de seus interesses particulares(1).


(1) Esta parte é uma grande lição para todos nós que lidamos com movimento social e organizações políticas. Um grupo grande, hegemônico em uma organização qualquer, que permite maior foco de suas ações para os apetites individuais do que para os projetos políticos coletivos tende a perder a hegemonia para adversários menores ou tende a viver com crises de guerra interna um contra o outro. JURO PRA VOCÊS QUE TENHO VISTO MUITO DISSO NO MOVIMENTO DE ESQUERDA!


(...) Pois se fosse lícito supor uma grande multidão capaz de consentir na observância da justiça e das outras leis de natureza, sem um poder comum que mantivesse a todos em respeito, igualmente o seria supor a humanidade inteira capaz do mesmo. Nesse caso não haveria, nem seria necessário, qualquer governo civil, ou qualquer Estado, pois haveria paz sem sujeição.


Também não é bastante para garantir aquela segurança que os homens desejariam que durasse todo o tempo de suas vidas, que eles sejam governados e dirigidos por um critério único apenas durante um período limitado, como é o caso numa batalha ou numa guerra. Porque mesmo que seu esforço unânime lhes permita obter uma vitória contra um inimigo estrangeiro, depois disso, quando ou não terão mais um inimigo comum, ou aquele que por alguns é tido por inimigo é por outros tido como amigo, é inevitável que as diferenças entre seus interesses os levem a desunir-se voltando a cair em guerra uns contra os outros (2).


(2) Aqui podemos ver o que aconteceu no Brasil até os anos oitenta em ditadura militar e após a volta da democracia. Antes, os movimentos de esquerda e civil estavam unidos contra os milicos e alguns de seus patrocinadores. Nos anos noventa, no forte ataque neoliberal ao país, os movimentos de esquerda estiveram unidos contra a direita civil arrasando o Estado brasileiro mesmo após o fim da ditadura. HOJE, TODA A ESQUERDA ORGANIZADA LUTA CONTRA SI MESMA, UNS CONTRA OS OUTROS (AQUI E LÁ FORA) E O CAPITAL E OS ESPOLIADORES DA SOCIEDADE NADAM DE BRAÇADA NA MANUTENÇÃO DE SEU PATRIMÔNIO (PATRIMONIALISMO) ÀS CUSTAS DOS DIREITOS PÚBLICOS E CIVIS.




DO PORQUE OS HUMANOS NÃO PODEREM VIVER COMO ABELHAS E FORMIGAS (subtítulo meu)


É certo que há algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem socialmente umas com as outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção senão seus juízos e apetites particulares, nem linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que consideram adequado para o benefício comum. Assim, talvez haja alguém interessado em saber por que a humanidade não pode fazer o mesmo. Ao que tenho a responder o seguinte.


PRIMEIRO, que os homens estão constantemente envolvidos numa competição pela honra e pela dignidade, o que não ocorre no caso dessas criaturas. E é devido a isso que surgem entre os homens a inveja e o ódio, e finalmente a guerra, ao passo que entre aquelas criaturas tal não acontece.


SEGUNDO, que entre essas criaturas não há diferença entre o bem comum e o bem individual e, dado que por natureza tendem para o bem individual, acabam por promover o bem comum. Mas o homem só encontra felicidade na comparação com os outros homens, e só pode tirar prazer do que é eminente.


TERCEIRO, que, como essas criaturas não possuem (ao contrário do homem) o uso da razão, elas não veem nem julgam ver nenhum erro na administração de sua existência comum. Ao passo que entre os homens são em grande número os que se julgam mais sábios, e mais capacitados que os outros para o exercício do poder público. E esses esforçam-se por empreender reformas e inovações, uns de uma maneira e outros doutra, acabando assim por levar o país à desordem e à guerra civil.


QUARTO, que essas criaturas, embora sejam capazes de um certo uso da voz, para dar a conhecer umas às outras seus desejos e outras afecções, apesar disso carecem daquela arte das palavras mediante a qual alguns homens são capazes de apresentar aos outros o que é bom sob a aparência do mal, e o que é mau sob a aparência do bem; ou então aumentando ou diminuindo a importância visível do bem ou do mal, semeando o descontentamento entre os homens e perturbando a seu bel-prazer a paz em que os outros vivem.


QUINTO, as criaturas irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano, e consequentemente basta que estejam satisfeitas para nunca se ofenderem com seus semelhantes. Ao passo que o homem é tanto mais implicativo quanto mais satisfeito se sente, pois é neste caso que tende mais para exibir sua sabedoria e para controlar as ações dos que governam o Estado.


POR ÚLTIMO, o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que o dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto não é de admirar que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido do benefício comum.




A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão (3).




(3) Até aqui no Leviatã, não encontrei a tal aversão de Hobbes à democracia. Percebam que ele está se referindo a "um homem" ou a "uma assembleia de homens", coisa que nós da esquerda tanto defendemos. Mas como ainda falta umas quatrocentas páginas, vai saber o que vamos encontrar lá adiante...




(...) Isto é mais do que um consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem:


- Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.


Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa, se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.


Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.


Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos.


Este poder soberano pode ser adquirido de duas maneiras. Uma delas é a força natural, como quando um homem obriga seus filhos a submeterem-se, e a submeterem seus próprios filhos, a sua autoridade, na medida em que é capaz de destruí-los em caso de recusa. OU como quando um homem sujeita através da guerra seus inimigos a sua vontade, concedendo-lhes a vida com essa condição. A outra é quando os homens concordam entre si em submeterem-se a um homem, ou a uma assembleia de homens, voluntariamente, com a esperança de serem protegidos por ele contra todos os outros. Este último pode ser chamado um Estado Político, ou um Estado por instituição. Ao primeiro pode chamar-se um Estado por aquisição. Vou em primeiro lugar referir-me ao Estado por instituição.




COMENTÁRIO FINAL


Este texto foi publicado em 1651. Ele todo é muito bem organizado e concatenado. Na leitura da primeira parte do livro, foi possível perceber que Hobbes não deixa escapar um detalhe de visão estrutural do mundo. Um mundo onde ele inclui a figura de Deus.





Bibliografia:
HOBBES DE MALMESBURY, THOMAS. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Coleção Os Pensadores. Nova Cultural, edição 1999.

sábado, 17 de março de 2012

Odorico Mendes: O patriarca da transcriação in "Odisseia", de Homero


Por: Haroldo de Campos

(Como havia prometido, segue o belo e esclarecedor texto do intelectual Haroldo de Campos abrindo a Odisseia de Homero, na edição do professor Antonio Medina Rodrigues)

(para facilitar a leitura, criei parágrafos para o "respiro" do leitor, pois o original tem apenas um parágrafo. Peço licença ao mestre Haroldo de Campos)

Odorico Mendes - Wikipedia

Odorico Mendes (1799-1864) é o patriarca da tradução criativa - da "transcriação" - no Brasil. Pertence nominalmente ao pré-romantismo neoclássico. Sousândrade, também helenista e fileleno, seu discípulo, ainda mais radical nas inovações lexicais e sintáticas da língua, chamava-o "pai rococó" (e na medida em que o período Rococó seja, "em muito, uma derivação e uma particularização do Barroco", na expressão de Emilio Carilla, essa caracterização poética poderá mesmo assumir valor estilístico-epocal). 

O pioneirismo odoriciano no enfoque dos problemas da tradução (tanto na prática desta, como nas notas teóricas que deixou a respeito) só poderá ser devidamente avaliado se pusermos em relevo, como traço marcante de todo seu trabalho no campo, a concepção de um sistema coerente de procedimentos que lhe permitisse helenizar ou latinizar o português, em lugar de neutralizar a diferença dessas línguas originais, rasurando-lhe as arestas sintáticas e lexicais em nossa língua. 

Em "Da Tradução como Criação e como Crítica" (ensaio de 1962, hoje em Metalinguagem & Outras Metas, São Paulo, Perspectiva, 1992), tive a ocasião, há exatamente 30 anos, de rebater a crítica preconceituosa de Sílvio Romero, que considerava as traduções de Odorico "monstruosidades" escritas em "português macarrônico". Esse juízo depreciativo, não obstante o ponto de vista em contrário de filólogos, maiores ou menores, como João Ribeiro, Silveira Bueno e Martins de Aguiar (o primeiro dos quais, este, um espírito de muito bom quilate, soube apreciar também o bizarro Sousândrade e o desabusado Oswald), acabou por prevalecer e dar o tom. 

Pouco pesou o elogio tributado por José Veríssimo a Odorico, chamando-o "insigne tradutor", já que este apelativo foi de imediato neutralizado com um juízo desqualificador do trabalho da tradução como um todo, reputado por Veríssimo tarefa para "homens de pouco engenho" (o autor da História e dos Estudos de literatura brasileira, aliás, não era amigo de "extravagâncias"; no mesmo texto em que malcompreendeu o nosso Simbolismo, desconsiderou Sousândrade, o discípulo maior de Odorico, indigitando-o como culpável mestre dos "nefelibatas" patrícios, cultores, segundo o crítico, de uma "forma estéril e manca de esnobismo").

Importa, sim, destacar, neste contexto, que a sentença condenatória de Sílvio Romero recebeu contemporaneamente o endosso de Antonio Candido. O autor da Formação da Literatura Brasileira (1959) carrega ainda mais na tinta, usando expressões como "bestialógico", "preciosismo do pior gosto", "pedantismo arqueológico" e "ápice de tolice", para se referir ao legado tradutório do maranhense (caracterizações depreciativas essas que mais relevam, se tivermos em mente a recepção benévola que o conceituado crítico reserva para outro tradutor de período pouco anterior, o Pe. Sousa Caldas, 1762-1814, autor, pelo flanco da Vulgata latina, de versões indiretas dos Salmos bíblicos, dessoradas por um tardo-classicismo de pendor árcade e por uma equivocada concepção quanto à natureza da poesia hebraica).

A propósito  do conceito "macarrônico", usado pejorativamente por Sílvio Romero, lembrei que "o preconceito contra o maneirismo não pode ter mais vez para a sensibilidade moderna, configurada por escritores como o Joyce das palavras-montagem e o nosso Guimarães Rosa, das inesgotáveis invenções vocabulares" (algumas delas, aliás, ainda hoje indigitadas por um crítico conservador, Wilson Martins, como sendo - precisamente - "monstruosidades"...).

Em "A Palavra Vermelha de Hoelderlin", estudo de 1967 (A Arte no Horizonte do Provável, São Paulo, Perspectiva, 1969; várias reedições), aproximei o caso das traduções greco-latinas de Odorico ao das transposições sofoclianas de Hoelderlin (tratadas, à época de seu aparecimento, como "um dos mais burlescos produtos do pedantismo"). Lembrei o represtígio desse ousado labor tradutório hoelderliniano junto ao círculo de Stefan George e na ensaística de Walter Benjamin. Insisti então na necessidade de se reconsiderar o legado odoriciano, inspirado por preceitos não diversos, em essência, daqueles sustentados por Rudolf Pannwitz e endossados por W. Benjamin, no sentido de que o tradutor, ao invés de "fixar-se no estágio em que, por acaso, se encontra sua língua", deve tomar rumo oposto e mais árduo, ou seja, "submetê-la ao impulso violento que vem da língua estrangeira".

Uma noção que Odorico terá haurido, a seu modo, em fonte vernácula, na Carta em Defesa da Língua (1790) de seu mestre Filinto Elísio: "O modo de aperfeiçoar a língua materna é enxertando nela o precioso das outras. Temos o exemplo antigo da língua romana, que se fez abastada com as riquezas que tirou da grega".

Recentemente ("Para Transcriar a ilíada", Revista USP, nº 12, dez./jan./fev. 1991-92), procurei mostrar que o veredicto com o qual Sílvio Romero interditara o acesso das traduções odoricianas ao decorum das letras pátrias poderia ser posto facilmente ao revés, desde que o lêssemos a contrapelo, através do crivo filosófico da "desconstrucionista" Gramatologia (1967) de J. Derrida, para quem: "O futuro só se pode antecipar na forma do perigo absoluto. Ele é o que rompe absolutamente com a normalidade constituída e por isso somente se pode anunciar, apresentar-se, sob a espécie da monstruosidade". A empresa odoriciana, de fato, pode-se dizer, projetou-se no futuro. Basta referir que, na França contemporânea, um dos feitos mais notáveis em matéria de tradução criativa é, justamente, uma subversiva Eneida recriada por Pierre klossowski (Gallimard, 1964), que se rebela contra as convenções gramaticais rígidas do país de Malherbe, no empenho de reconfigurar o "aspecto deslocado" da sintaxe latina, num gesto antinormativo que o teórico da tradução Antoine Berman (L'Épreuve de l'Etranger, Gallimard, 1984), examinando o caso de klossowski ao lado do de Hoelderlin, faz corresponder a uma crise do "etnocentrismo" em cultura.

Das mais oportunas, portanto, a iniciativa da Edusp de apresentar ao público esta admirável Odisseia brasileira de Odorico Mendes, reintroduzindo uma obra fundamental, há muito esgotada, no fluxo sanguíneo de nossa literatura, e fazendo-o numa cuidadosa reedição, a cargo de Antônio Medina Rodrigues, professor de grego e estudioso do notável humanista maranhense. 

Medina, autor de duas dissertações universitárias sobre as traduções odoricianas (uma, de mestrado, sobre a Eneida Brasileira; outra, doutoral, sobre o contributo homérico do grande maranhense), levou a efeito um meticuloso trabalho de apuração e comentário do texto desta Odisseia em vernáculo, cuja primeira publicação só ocorreu anos após a morte de seu recriador brasileiro. 

Deu-nos, assim, com o estudo introdutório que também elaborou para este volume, um paradigma de como tratar criteriosamente, no nível editorial, o texto complexamente belo desta rapsódia helênica, onde raia, revisualizada e ressonorizada em nossa língua, a "dedirrósea Aurora" de Odorico, - que fora rhododáctylos Éos em Homero e haveria de ser "a homérea rododáctila Aurora" em Sousândrade - elos, todos eles, entreunidos, de uma só música.

...................................HAROLDO DE CAMPOS, 1992


Bibliografia:

HOMERO. Odisseia. Tradução de Manuel Odorico Mendes. Edição de Antonio Medina Rodrigues. Edusp. 




COMENTÁRIO DO BLOG:

O texto de Haroldo de Campos é sobretudo uma aula de crítica literária e de filologia. Espero que os alunos de letras que aqui chegarem, apreciem o teor da defesa de Campos no que diz respeito à criatividade necessária para se enfrentar o desafio da tradução.

Eu li o Ulisses de James Joyce, na tradução de nosso filólogo Antônio Houaiss. Uma tradução brasileira feita em 1966. Agora tem uma nova tradução de Bernardina da Silva Pinheiro de 2005, a qual é especializada em tradução de literatura. O texto e os desafios enfrentados por ela devem ter sido muito interessantes e gostaria de ler a nova tradução da obra de Joyce.

Traduzir é ter criatividade para buscar repercutir em outra língua a intenção do autor original.

-------------------------------------------------

quarta-feira, 14 de março de 2012

O LEVIATÃ - DO JUSTO E INJUSTO (II)



Capa da primeira edição



(Leitura atenciosa)
O texto é de Hobbes. Estou só marcando partes ou tecendo comentários.



CAPÍTULO XV


De outras leis de Natureza


"DAQUELA LEI DE NATUREZA pela qual somos obrigados a transferir aos outros aqueles direitos que, ao serem conservados, impedem a paz da humanidade, segue-se uma terceira:


Que os homens cumpram os pactos que celebrarem.


Sem esta lei os pactos seriam vãos, e não passariam de palavras vazias; como o direito de todos os homens a todas as coisas continuaria em vigor, permaneceríamos na condição de guerra.


Nesta lei de natureza reside a fonte e a origem da JUSTIÇA. Porque sem um pacto anterior não há transferência de direito, e todo homem tem direito a todas as coisas, consequentemente nenhuma ação pode ser injusta. Mas, depois de celebrado um pacto, rompê-lo é INJUSTO. E a definição da injustiça não é outra senão o não cumprimento de um pacto. E tudo o que não é injusto é justo.


COMO OBRIGAR OS HOMENS AOS PACTOS?


(...) Portanto, para que as palavras "justo" e "injusto" possam ter lugar, é necessária alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao cumprimento de seus pactos, mediante o terror de algum castigo que seja superior ao benefício que esperam tirar do rompimento do pacto, e capaz de fortalecer aquela propriedade que os homens adquirem por contrato mútuo, como recompensa do direito universal a que renunciaram. E não pode haver tal poder antes de erigir-se um Estado...


"a justiça é a vontade constante de dar a cada um o que é seu"


(...) Portanto, onde não há Estado nada pode ser injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos válidos, mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los, e é também só aí que começa a haver propriedade.


PARA OS PACTOS VALEREM, ALGO DEVE GARANTI-LOS


Porque não pode tratar-se de promessas mútuas quando de ambos os lados não há garantia de cumprimento, como quando não há um poder civil estabelecido acima dos autores das promessas. Porque essas promessas não são pactos...


(...)


Numa condição de guerra, em que cada homem é inimigo de cada homem, por falta de um poder comum que os mantenha a todos em respeito, ninguém pode esperar ser capaz de defender-se da destruição só com sua própria força ou inteligência, sem o auxílio de aliados, em alianças das quais cada um espera a mesma defesa...


(...)


Portanto a justiça, isto é, o cumprimento dos pactos, é uma regra da razão, pela qual somos proibidos de fazer todas as coisas que destroem a nossa vida, e por conseguinte é uma lei de natureza.




COMENTÁRIO
No capítulo anterior, Hobbes define o que ele chama de Lei de Natureza.


"Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la."




O SABOR DA JUSTIÇA... UMA CERTA NOBREZA OU CORAGEM


"O que presta às ações humanas o sabor da justiça é uma certa nobreza ou coragem (raras vezes encontrada), em virtude da qual se despreza ficar devendo o bem-estar da vida à fraude ou ao desrespeito pelas promessas. É essa justiça da conduta que se significa quando se chama virtude à justiça, e vício à injustiça."


(bela definição essa, heim!)





Bibliografia:
HOBBES DE MALMESBURY, THOMAS. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Coleção Os Pensadores. Nova Cultural, edição 1999.

domingo, 11 de março de 2012

O Leviatã - Do Justo e Injusto (I)


Thomas Hobbes. Fonte: Wikipedia


O LEVIATÃ – THOMAS HOBBES

DO JUSTO E INJUSTO (CONTRATOS E LEIS DA NATUREZA)


CAPÍTULO XIV

Da Primeira e Segunda Leis Naturais, e dos Contratos


O DIREITO de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.

POR LIBERDADE entende-se, conforme a significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem.

UMA LEI DE NATUREZA (LEX NATURALIS) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la. Porque embora os que têm tratado deste assunto costumem confundir jus e Lex, o direito e a lei, é necessário distingui-los um do outro. Pois o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas. De modo que a lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade, as quais são incompatíveis quando se referem à mesma matéria.”


COMENTÁRIO EM FORMA DE PERGUNTA:

Segundo a lógica de raciocínio de Hobbes é melhor:

“o homem em estado natural de guerra”

OU

“o homem cedendo um direito natural em nome da preservação da vida na paz”?


E DADO que a condição do homem (conforme foi declarado no capítulo anterior) é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Portanto, enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver.”


Hobbes segue no parágrafo para chegar a sua Primeira lei:
“Consequentemente é um preceito ou regra geral da razão, Que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos.”


OU SEJA, A PRIMEIRA LEI DE NATUREZA DO HOMEM É PROCURAR A PAZ E SEGUI-LA!

Agora Hobbes vai apresentar um dos pilares ou contratos para que essa paz buscada se realize: que todos devem ceder parte de seus direitos, fazer pactos, para sair da condição de guerra.


“Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. Porque enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira todos os homens se encontrarão numa condição de guerra. Mas se os outros homens não renunciarem a seu direito, assim como ele próprio, nesse caso não há razão para que alguém se prive do seu, pois isso equivaleria a oferecer-se como presa (coisa a que ninguém é obrigado), e não a dispor-se para a paz. É esta a lei do Evangelho: faz aos outros o que queres que te façam a ti. E esta é a lei de todos os homens: Quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris.”


DA INJUSTIÇA DE NÃO CUMPRIR ÀQUILO A QUE SE OBRIGOU

“(...) Quando de qualquer destas maneiras alguém abandonou ou adjudicou seu direito, diz-se que fica obrigado ou forçado a não impedir àqueles a quem esse direito foi abandonado ou adjudicado o respectivo benefício, e que deve, e é seu dever, não tornar nulo esse seu próprio ato voluntário; e que tal impedimento é injustiça e injúria, dado que é sine jure, pois se transferiu ou se renunciou ao direito. De modo que a injúria ou injustiça, nas controvérsias do mundo, é de certo modo semelhante àquilo que nas disputas das Escolas se chama absurdo. Porque tal como nestas últimas se considera absurdo contradizer aquilo que inicialmente se sustentou, assim também no mundo se chama injustiça e injúria desfazer voluntariamente aquilo que inicialmente se tinha voluntariamente feito...”


(SEGUE LEITURA EM OUTRAS POSTAGENS)

Bibliografia:
HOBBES DE MALMESBURY, THOMAS. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Coleção Os Pensadores. Nova Cultural, edição 1999.



sábado, 10 de março de 2012

A morte e a morte de Quincas Berro Dágua (1959) – Jorge Amado


Capa de minha edição.

CLÁSSICO BRASILEIRO de 1959


Li nesta semana (entre idas e vindas em transporte urbano) mais uma obra de Jorge Amado, para ver em seguida o filme brasileiro baseado na história, pois sempre que penso em assistir a um filme baseado em livros, gosto de ler o livro antes.

Tem filmes famosos que não vi até hoje porque não li o livro. Querem exemplos? Moby Dick, As vinhas da Ira etc. Outro exemplo recente é o filme também baseado na obra de Jorge Amado Capitães da areia. Agora já li o livro e posso ver o filme também.

Fundação Casa de Jorge Amado, 
Pelourinho, Salvador - BA.
Foto: William Mendes, 2011.

A LEITURA

A leitura é uma delícia. É leve e rápida. Como precisei comprar o livro para meu filho usar na escola, acabei pegando e lendo ele primeiro.


“Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranquila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Bahia. Presenciada, no entanto, por testemunhas idôneas, largamente falada nas ladeiras e becos escusos, a frase final repetida de boca em boca, representou, na opinião daquela gente, mais que uma simples despedida do mundo, um testemunho profético, mensagem de profundo conteúdo (como escreveria um jovem autor de nosso tempo)...”


“Não sei se esse mistério da morte (ou das sucessivas mortes) de Quincas Berro Dágua pode ser completamente decifrado. Mas eu o tentarei, como ele próprio aconselhava, pois o importante é tentar, mesmo o impossível.”


Assim começa e termina o primeiro capítulo do livro. Encontramos ali na frase final um EU que se identifica para TENTAR decifrar a ou as mortes de Quincas.

Ladeiras do Pelourinho, Salvador BA. 
Foto: William Mendes, 2011.

AS MORTES DE QUINCAS BERRO DÁGUA

São três as mortes de nosso personagem: “Cometendo uma injustiça (a família), atribuem a esses amigos de Quincas toda a responsabilidade da malfadada existência por ele vivida nos últimos anos, quando se tornara desgosto e vergonha para a família. A ponto de seu nome não ser pronunciado e seus feitos não serem comentados na presença inocente das crianças, para as quais o avô Joaquim, de saudosa memória, morrera há muito, decentemente, cercado da estima e do respeito do todos. O que nos leva a constatar ter havido uma primeira morte, se não física pelo menos moral, datada de anos antes, somando um total de três, fazendo de Quincas um recordista da morte, um campeão do falecimento, dando-nos o direito de pensar terem sido os acontecimentos posteriores – a partir do atestado de óbito até seu mergulho no mar – uma farsa montada por ele com o intuito de mais uma vez atazanar a vida dos parentes, desgostar-lhes a existência, mergulhando-os na vergonha e nas murmurações da rua...”

Igreja de São Francisco, Pelourinho BA. 
Foto: William Mendes, 2011.

A MORTE TRAZ RESPEITO AO MORTO

Quando um homem morre, ele se reintegra em sua respeitabilidade a mais autêntica, mesmo tendo cometido loucuras em sua vida. A morte apaga, com sua mão de ausência, as manchas do passado e a memória do morto fulge como diamante. Essa a tese da família, aplaudida por vizinhos e amigos. Segundo eles, Quincas Berro Dágua, ao morrer, voltara a ser aquele antigo e respeitável Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da mesa de rendas estadual, de passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca, pasta sob o braço, ouvido com respeito pelos vizinhos, opinando sobre o tempo e a política, jamais visto num botequim, de cachaça caseira e comedida.”


Comentário: Cara!, e não é que ao ler esta máxima sobre a morte me lembrei de um monte de gente falecida que para uma boa parte do mundo era um lixo de gente e que após a morte foi reverenciada como a melhor pessoa do mundo!

Até hoje, ninguém entende o ex-presidente Lula da Silva, sacaneado por trinta anos pelo Roberto Marinho, babando elogios ao morto em seu velório...

Belíssima construção da Faculdade
de Medicina de Salvador BA.
Foto: William Mende, 2011.

OS PARENTES

Os personagens parentes de seu Joaquim Soares da Cunha são a filha Vanda, seu genro Leonardo, seu irmão tio Eduardo e a esposa tia Marocas, e a falecida esposa Dona Otacília.

Para Quincas eram jararacas mãe e esposa, saco de peidos a cunhada, e pobre coitado o genro.


OS AMIGOS

Os amigos inseparáveis do paizinho são Curió, Negro Pastinha, cabo Martim e Pé-de-Vento.

Pé-de-Vento vendia anfíbios para a ciência. Ele vivia com uma jia na mão e no bolso. (“sapo não, jia”)

Quitéria do olho arregalado, que “nos momentos de maior ternura, dizia-lhe ‘Berrito’ por entre os dentes mordedores”.

Mestre Manuel, o dono do saveiro.

Maria Clara, Doralice, gorda Margô...

Outra bela igreja da região do Pelourinho. 
Foto: William Mendes, 2011.

AS ALCUNHAS

Rei dos vagabundos da Bahia, Cachaceiro-mor de Salvador, Filósofo esfarrapado da Rampa do Mercado, Senador das gafieiras, “o vagabundo por excelência” eis como o tratavam os jornais, onde por vezes sua sórdida fotografia era estampada. O Patriarca da zona do baixo meretrício.

Quincas se via como O velho marinheiro (“Velho marinheiro sem barco e sem mar, desmoralizado em terra, mas não por culpa sua”).

Panorâmica vendo a baía e o Elevador Lacerda. 
Foto: William Mendes, 2011.

O NOME QUINCAS BERRO DÁGUA

(...) Nos bares, nos botequins, no balcão das vendas e armazéns, onde quer que se bebesse cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta da perda irremediável. Quem sabia beber melhor do que ele, jamais completamente alterado, tanto mais lúcido e brilhante quanto mais aguardente emborcava? Capaz como ninguém de adivinhar a marca, a procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes todas as nuanças de cor, de gosto e de perfume. Há quantos anos não tocava em água? Desde aquele dia em que passou a ser chamado Berro Dágua.

Não que seja fato memorável ou excitante história. Mas vale a pena contar o caso pois foi a partir desse distante dia que a alcunha de “Berro Dágua” incorporou-se definitivamente ao nome de Quincas. Entrara ele na venda de Lopez, simpático espanhol, na parte externa do mercado. Freguês habitual, conquistara o direito de servir-se sem auxílio do empregado. Sobre o balcão viu uma garrafa, transbordando de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu para limpar a boca, virou-o de uma vez. E um berro inumano cortou a placidez da manhã no mercado, abalando o próprio elevador Lacerda em seus profundos alicerces. O grito de um animal ferido de morte de um homem traído e desgraçado:

- Águuuuua!”.

Foto noturna do Elevador Lacerda. Até ele
sacudiu com o berro do Quincas.
Foto de William Mendes, 2011.

E AS DERRADEIRAS PALAVRAS?

Há várias versões. Um dos trovadores do mercado diz assim:


No meio da confusão
Ouviu-se Quincas dizer:
“Me enterro como entender
Na hora que resolver.
Podem guardar seu caixão
Pra melhor ocasião.
Não vou deixar me prender
Em cova rasa no chão.”
E foi impossível saber
O resto de sua oração.

Noturna do Elevador Lacerda, com detalhe de pintura.
Foto: William Mendes, 2011.

COMENTÁRIO FINAL

O defunto que não deixou de rir um momento sequer enquanto durou a sacanagem dele em desfazer a tentativa da família de ressuscitar o venerável e respeitável Joaquim Soares da Cunha é um dos pontos altos da história. Sem essa de manter a reputação social da família!

O humor, a ironia e a sensualidade nas obras de Jorge Amado na sua fase após os anos cinquenta são bem diferentes do estilo de forte denúncia social presente nos primeiros vinte anos de obras como Capitães da areia. Não estou dizendo que não há denúncia social em histórias como a de Quincas, mas na primeira fase, as histórias são bem duras.

Lembro-me de como fiquei tocado com a leitura de Mar morto, leitura de minha adolescência. Preciso reler este livro, mas na minha cabeça ficou uma história de marinheiros e mulheres do porto, que sempre vinculo à música de Chico Buarque “Minha História (Gesubambino)”.


“Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar,
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar,
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente,
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente...”


Capa do filme.
O FILME

O filme estreou em 2010 e tem direção e adaptação de Sérgio Machado.

Eu gostei do filme. A interpretação de Paulo José no corpo defunto de Quincas está muito boa. O filme ficou alegre e divertido. A sonoplastia também ficou boa.

A adaptação do Sérgio Machado também é satisfatória, já que ele não segue a história. Mas eu sei que transformar em arte visual obras literárias não é nada fácil.

As técnicas e os efeitos são completamente diferentes. Na literatura, a participação do leitor é obrigatória. Além de ler, cabe ao leitor ser o diretor de fotografia e sonoplastia. Toda a arte visual é dele – leitor - e é única.

Na sétima arte, ganhamos de mão beijada todo o visual. BUUMM! Lá está, é só sentar e ver, ouvir, sentir...


Gostei do filme. Tá bem levinho. É só sentar e assistir!

William


Post Scriptum (24/jan/17):

Releitura da postagem para escrever sobre a releitura de Mar Morto, de 1936.

quarta-feira, 7 de março de 2012

ODISSÉIA - HOMERO (em prosa)

Homero - fonte: Wikipedia.

(atualizado em 11/03/12)

Tradução de Jaime Bruna

CANTO I

Musa, narra-me as aventuras do herói engenhoso, que, após saquear a sagrada fortaleza de Tróia, errou por tantíssimos lugares vendo as cidades e conhecendo o pensamento de tantos povos e, no mar, sofreu tantas angústias no coração, tentando preservar a sua vida e o repatriamento de seus companheiros, sem, contudo, salvá-los, mau grado seu; eles perderam-se por seu próprio desatino; imbecis, devoraram as vacas de Hélio, filho de Hiperião, e ele os privou do dia do regresso. Começa por onde te apraz, deusa, filha de Zeus, e conta-nos a nós também.

Já se achavam em sua terra todos os demais que escaparam ao fim abismal, salvos da guerra e do mar; só ele ainda curtia saudades da pátria e da esposa, retido no seio duma gruta pela real ninfa Calipso, augusta deusa, que o cobiçava para marido.

(...)


Vendo a postagem anterior em verso dá para perceber o quanto é diferente a mesma obra adaptada em tecituras diferentes. Após o começo acima, ocorre uma reunião dos deuses no Olimpo sobre os acontecimentos que envolvem Odisseu e suas desventuras. A deusa Atena atua em defesa de Odisseu.

(Fui mexer um pouco em minhas edições da Odisséia porque minha sobrinha iniciou o curso de Letras na Universidade Federal de Uberlândia e estava pedindo aos colegas e conhecidos alguma edição para ler. Tenho uma edição em prosa, mas estou a seiscentos quilômetros de distância dela. De qualquer forma, ela já conseguiu uma edição eletrônica)


Após a reunião dos deuses no Olimpo, a deusa Atena - de olhos verde-mar - decide ir à Itaca, em visita a Telêmaco, filho de Odisseu, para estimulá-lo a sair em busca de seu pai, de maneira a salvar suas posses e mãe, que estão na mão dos aproveitadores locais que pensam em desposar Penélope e ficar com as posses de Odisseu e Telêmaco.

(...)
Assim falou e atou em seus pés as lindas sandálias divinas de ouro, que a transportaram, tanto sobre a água como sobre a terra infinita, com a rapidez do sopro do vento; apanhou a forte lança, de ponta de bronze acerado, pesada, grande e grossa, com que subjuga fileiras de varões guerreiros com quem ela, filha de um pai poderoso, se agasta. Desceu de um salto dos cimos do Olimpo e pousou no país de Ítaca, no vestíbulo de Odisseu, na soleira do pátio; empalmava a lança de bronze, sob a figura dum estrangeiro, Mentes, caudilho dos táfios. Deparou ali os arrogantes pretendentes, que se distraíam jogando gamão diante das portas, sentados sobre couros de bois por eles próprios abatidos. Dos arautos e ativos criados, uns misturavam água ao vinho em crateras, enquanto outros, com esburacadas esponjas, limpavam e achegavam as mesas e ainda outros picavam carne abundante.


O primeiro a avistá-la foi Telêmaco, de aspecto divino. Sentado entre os pretendentes, via, em imaginação, o nobre pai chegar um dia, desbaratar os pretendentes pelo solar, impor respeito e reinar em sua casa. Enquanto cismava nisso, sentado entre os pretendentes, avistou Atena; caminhou direito ao vestíbulo, indignado, no íntimo, de que um forasteiro aguardasse longo tempo à porta. Aproximou-se, apertou-lhe a destra, recebeu sua lança de bronze e disse-lhe aladas palavras:


- Salve, estrangeiro; sê bem-vindo a esta casa. Quando tiveres provado o nosso jantar, dirás o de que precisas..."


COMENTÁRIOS:
Na Grécia Antiga, a recepção de um visitante era toda marcada por um ritual. Jamais se iniciavam as tratativas e assuntos diversos antes de se alimentar bem as visitas. Só após a refeição é que se começavam as discussões e conversas.


Os deuses tinham o hábito de andarem disfarçados entre os humanos. É o que vocês podem observar no texto acima, quando a deusa Atena se faz ver como o estrangeiro Mentes. Eles apareciam e desapareciam em meio a fumaça ou de um instante a outro.


A tradição oral dos poemas épicos também era toda construída com rimas e ritmos para facilitar a memória. De maneira que os aedos (cantadores populares e artistas de rua) tinham estruturas inteiras na memória, assim como os repentistas da atualidade, que fazem rimas nas ruas com suas violas.


(...)
"Eia, porém, dize-me uma coisa, falando sem rebuços; quem és? de que lugar no mundo? onde demoram tua cidade e teus pais? em que espécie de barco chegaste? como te trouxeram os mareantes a Ítaca? quem se prezavam eles de ser?"


"(...) todos os fidalgos potentados das ilhas, de Dulíquio, de Same e da selvosa Zacinto, e quantos senhoreiam em Ítaca rochosa, todos pretendem a mão de minha mãe e vão consumindo a casa. Ela nem repele as odiosas núpcias, nem é capaz de pôr cobro à situação; eles vão, assim, com seus banquetes, dando cabo de minha casa e não tardarão a liquidar também a minha pessoa."


Telêmaco pede (acima) ao estrangeiro Mentes (Atena), após a refeição, que se identifique. O modelo fixo das perguntas se repete várias vezes na Odisséia.


Mais adiante ele explica ao estrangeiro sobre aquela caterva de gente dilapidando seu patrimônio.


A parte que cito abaixo é muito engraçada. Atena dá o maior sermão no jovem Telêmaco por ele ficar se lamentando pelos cantos vendo aquele bando em sua casa.


Diz a Telêmaco que chame uma assembleia com os aqueus para tratar das coisas de seu guerreiro pai, que mande aqueles pretendentes para casa, que mande sua mãe ir para junto do pai dela. Também lhe diz para que saia em viagem a procura de notícias de seu pai Odisseu. Sugere perguntar ao guerreiro Menelau em Esparta, pois este foi o último a chegar de Tróia. Por fim, diz a Telêmaco que seja homem e faça como o jovem Orestes, que vingou o assassinato de seu pai guerreiro Agamêmnon matando Egisto. 



"(...) Mas depois que levares a termo esses pios deveres, cogita, em tua mente e teu coração, em como matar os pretendentes em teu solar, quer pela astúcia, quer em luta aberta. Não deves proceder como criança, pois já não estás nessa idade. Não ouviste contar quanta glória adquiriu em todo o mundo o divino Orestes, quando matou o assassino de seu pai, o patife Egisto, o matador do glorioso Agamêmnon? Sê valoroso também tu, meu caro, pois te vejo tão formoso e crescido, para teres igualmente os louvores da posteridade..."


Bibliografia:
HOMERO. Odisséia. Tradução de Jaime Bruna. Editora Cultrix, São Paulo.