quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Luis Inácio LULA da Silva: Esquerda fez opção pela democracia na América Latina

Foto Carta Maior

“Esquerda fez opção pela democracia na América Latina”


Em entrevista à Carta Maior, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva faz um balanço de oito anos de governo, aponta as conquistas e mudanças que esse período trouxe para o Brasil e para a América Latina e fala sobre o aprendizado que teve neste período a frente da presidência da República. Entre outros assuntos, aborda também a relação com os meios de comunicação e destaca o compromisso assumido pela esquerda na América Latina: "A esquerda fez uma opção pela democracia. "quem dá golpe não é a esquerda. Não foi ninguém de esquerda que deu o golpe em Honduras".

Redação - Carta Maior

Em entrevista concedida à Carta Maior e aos jornais Página/12 (Argentina) e La Jornada (México), na manhã desta quinta-feira, em Brasília, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um balanço de seus oito anos de governo e as mudanças que esse período trouxe para o país e para a América Latina. Na conversa, entre outros assuntos, o presidente fala sobre o aprendizado que teve neste período - Quando você está no governo, você não pensa, você não acha e você não acredita; você faz ou não faz. E o governo é um eterno tomar de posição – sobre a relação com os meios de comunicação – Se dependesse da imprensa eu teria 10% de aprovação, ou menos – e sobre o compromisso assumido pela esquerda na América Latina: A esquerda, na América Latina, fez uma opção pela democracia, e está chegando ao poder em vários países pela via da democracia. E quem dá golpe não é a esquerda. Não foi ninguém de esquerda que deu o golpe em Honduras.

Participaram da entrevista, o sociólogo e colunista da Carta Maior, Emir Sader, e os jornalistas Martín Granovsky, do Página/12 (Argentina), e Carmen Lira, do La Jornada. A Carta Maior publica a íntegra dessa conversa. Aqui está a primeira parte.


Emir Sader: A primeira questão é sobre o que o seu desempenho na Presidência lhe ensinou? Quais foram os aprendizados, as mudanças? O que o Lula de 2003 tem de diferente do Lula de hoje. E o que o Lula de 2010 tem de diferente em relação ao de 2003?

Presidente Lula: Eu penso, Emir, que na Presidência primeiro a gente aprende a governar. Quando você chega à Presidência da República, você se depara com a tua convivência de muitos anos de oposição em que você vai para um debate, você vai para uma reunião e você diz aos teus interlocutores “eu penso, eu acho, eu acredito”. Quando você está no governo, você não pensa, você não acha e você não acredita; você faz ou não faz. E o governo é um eterno tomar de posição. Você aprende a ter mais tolerância e você aprende a consolidar a tua prática democrática, porque a convivência política na adversidade é um ensinamento estupendo para quem acredita na democracia como um valor incomensurável na arte de fazer política. E isso a gente só aprende exercitando todo santo dia. Eu não acredito que tenha uma universidade capaz de ensinar alguém a fazer política, a tomar decisão. Você pode teorizar, mas entre a teoria e a prática tem uma diferença enorme no dia a dia. E eu penso que esse é o aprendizado. Por exemplo, no segundo mandato meu, todo mundo sabe que eu tinha medo do segundo mandato. Eu tinha medo do esgotamento, eu tinha medo da chatice, eu tinha medo de que você vai repetir a mesmice.

Quando nós criamos o PAC, na verdade nós fizemos um transplante de todos os órgãos vitais do governo e fizemos um governo novo, muito mais produtivo, muito mais eficaz, muito mais atuante, e as coisas estão acontecendo. Eu acho que isso, para mim, foi um aprendizado estupendo e que eu não quero desaprender nesse tempo em que eu vou deixar a Presidência. Eu preciso continuar aprendendo porque passar pela Presidência, enfrentar as adversidades que nós enfrentamos, e chegar ao final do mandato na situação que nós estamos chegando, eu penso que o exercício da democracia foi praticado intensamente.

Foram 72 conferências nacionais sobre todos os temas, de Segurança Pública a Comunicação, de portador de deficiência a GLTB [LGBT], e todas as políticas deliberadas por nós são resultado dessas conferências. Portanto, o povo participou ativamente das decisões e das políticas públicas do governo. Então, essa é a mudança fundamental, além do que, quando eu cheguei em 2003, a gente gastava R$ 1 bilhão por ano no Ministério dos Transportes, por ano, e hoje nós gastamos R$ 1,6 bilhão por mês. Ou seja, aprendemos a gastar e aprendemos a fazer obras.


Houve essa mudança no mesmo ministério?

Presidente Lula: No mesmo ministério. Hoje, nós gastamos 1,6 bilhão por mês, pagamos, contratamos, coisa que a gente só fazia 1 bilhão por ano. Nós tínhamos 380 bilhões de crédito para o Brasil inteiro. Hoje, nós temos 1,6 trilhão de crédito. Olha, o dia que a imprensa brasileira resolver divulgar a revolução que aconteceu no Brasil, o povo vai se dar conta porque é que o governo aparece com 80% de aprovação nas pesquisas. Não é o Lula, é o governo que aparece com 80% de aprovação no oitavo ano de mandato. Qual é o fenômeno? Porque não depende da imprensa. Se dependesse da imprensa, eu teria 10, menos 10 de aprovação. Eu estaria devendo pontos. Ou seja, qual é o fenômeno? O fenômeno é que as coisas estão chegando na mão do povo. O povo está recebendo os benefícios, o povo está vendo as coisas acontecerem. E quem não falou não fez parte da história nesse período. Eu acho que essa foi a grande mudança que eu vejo de 2003 para 2010.


Carmen Lira/La Jornada: O senhor acabou de mencionar uma coisa muito interessante para os mexicanos. Fizemos coisas que algum dia a imprensa vai divulgar. Não foi divulgado através do governo?

Presidente Lula: Olha, aqui no Brasil, há um debate muito interessante. E eu tenho notado que não é um debate do Brasil. Eu tenho notado que na Argentina tem o mesmo debate, e que nos países da América Latina há o mesmo debate. E eu tenho notado até o Obama que, quando tomou posse, disse que a Fox não agia como um meio de comunicação, mas como um partido político. Bem, eu converso com muitos dirigentes do mundo inteiro. Todo mundo reclama. Eu não reclamo muito da imprensa porque eu acho que eu cheguei onde cheguei por causa da imprensa. Ela contribuiu muito para que eu chegasse onde cheguei. Portanto, eu sou um defensor juramentado da liberdade de expressão e da democracia. Agora, tem gente que confunde a democracia, a liberdade de comunicação com atitudes extemporâneas. E eu não sei se é uma coisa mundial... que não há notícias boas.. não vendem jornal, talvez o que venda jornal seja só escândalo...

Veja, eu vou terminar o meu mandato sem nunca ter almoçado com nenhum dono de jornal, nenhum dono de televisão, nenhum dono de revista, durante o meu mandato. Mantive com eles uma relação democrática, respeitosa, entendendo o papel deles e querendo que eles entendessem o meu papel. Acho que muitas vezes o povo sabe das coisas boas que acontecem neste país porque nós divulgamos, em publicidade do governo, porque a internet divulga, os blogs divulgam, o blog do Planalto divulga....Mas às vezes, se dependesse de determinados meios de comunicação, eles simplesmente não falam a respeito do assunto. Alguns até dizem “olha, nós não temos interesse em fazer essa cobertura oficial, de inauguração de coisa”. Sabe, não têm interesse. Pode ser verdade...

O dado concreto é que eu acho que se o povo fosse melhor informado, o povo saberia de mais coisas e o povo poderia fazer juízo de valor melhor, sobre as coisas. Então, para mim, a arte da democracia é essa, é as pessoas terem segurança na qualidade da informação, na lisura da informação e na neutralidade da informação. Quem acompanha a política brasileira nesse momento vai perceber que seria muito mais fácil que alguns meios de comunicação assumissem, categoricamente, o seu compromisso partidário. E aí, a gente ficaria sabendo quem é quem, mas não é assim que funciona no Brasil. Parece tudo independente, mas é só ver as manchetes que a independência termina onde começa.

Esse é um processo de aprendizado, ou seja, nós temos muito pouco tempo de democracia, se vocês compreenderem, nós estamos vivendo neste instante o maior período de democracia contínua do Brasil, seja a partir da Constituição de 88, seja a partir da eleição do presidente Sarney. São vinte e poucos anos, portanto, é uma democracia muito incipiente, que está muito fortalecida e com instituições sólidas. Aqui, nós fizemos um impeachment e não aconteceu nada com o país. Aqui se elegeu um metalúrgico e nós estamos percebendo um avanço geral na América Latina e eu acho que isso vai consolidando a democracia independentemente dos saudosistas que sempre disseram que um metalúrgico não poderia chegar no andar de cima, que um índio não poderia chegar no andar de cima, que um negro não poderia chegar no andar de cima, que uma mulher não podia chegar no andar de cima. Nós estamos quebrando esses tabus, e estamos mostrando algo que precisa ser valorizado: a esquerda, na América Latina, fez uma opção pela democracia, e está chegando ao poder em vários países pela via da democracia. E quem dá golpe não é a esquerda. Não foi ninguém de esquerda que deu o golpe em Honduras. Então, as pessoas precisam saber que se a informação fluir corretamente, ela facilita a vida das pessoas na tomada de decisões.

E eu penso que no Brasil nós vamos aprendendo, nós vamos aprendendo e vamos construindo a nossa democracia, e eu, sinceramente, não... eu sou um homem que não tem o direito de reclamar, porque eu vou terminar o meu mandato, certamente com a maior aprovação que um governo já terminou. Tem gente que não começa com o que eu vou terminar. Então, eu tenho que agradecer ao povo brasileiro, agradecer à democracia brasileira e, por que não dizer, agradecer à imprensa, porque o comportamento dela, pró ou contra, foi formando um juízo de valor. Eu tenho uma tese que vale para a imprensa e que vale para o nosso comportamento cotidiano: se você é, todos os dias, favorável ao governo, você perde credibilidade. Mas se você, todos os dias é contra, você perde credibilidade. Ou seja, os dois extremos, quando se encontram, o resultado é burrice. Então, você tem que falar as coisas boas do governo quando elas acontecem, para te dar credibilidade para falar das coisas ruins quando elas acontecem e ter a mesma credibilidade. Eu acho que é isso que dá desenvoltura à consolidação da liberdade de comunicação no país. É o compromisso com a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade, doa a quem doer.


Martín Granovsky: Presidente, me desculpe, mas eu não falo português. Eu me lembro que na campanha de 2002, o mercado não entendia a necessidade de que os brasileiros tivessem que ter três refeições diárias. Esse era um dos principais objetivos do seu governo. Após dois governos, esse objetivo foi cumprido?

Presidente Lula: Olha, eu penso que nós conseguimos fazer uma revolução nesses dois mandatos, nesses oito anos de governo. Primeiro, uma coisa que aconteceu no Brasil: você tirar 27 milhões de pessoas do estágio de miséria absoluta e, ao mesmo tempo você levar 36 milhões de pessoas para a classe média brasileira não é pouca coisa. Gerar 15 milhões de empregos...


Martín Granovsky: Trinta e seis é quase uma Argentina.

Presidente Lula: É, quase uma Argentina. Criamos 15 milhões de empregos em oito anos. Ao mesmo tempo, fizemos programas que atendam à parte mais pobre da população, programas simples, mas programas objetivos, como o programa Bolsa Família, como o programa Luz para Todos, como o programa PPA, que é um programa de compra de alimentos, um programa para a Agricultura Familiar.

Essas são tomadas de decisões de políticas públicas que não estavam previstas no cenário político nacional. E eu acho que o povo brasileiro vive hoje mais feliz, vive melhor, e nós temos que ter consciência de que ainda falta muita coisa para fazer no Brasil, muita, mas muita coisa para fazer no Brasil. Eu espero que a companheira Dilma possa, nos próximos tempos, concluir o trabalho que nós começamos e que provamos que era possível ser feito no Brasil, e fizemos com muita força e, eu diria, com muita eficácia. Eu não quero ser presunçoso, mas eu acho que nós fizemos, do ponto de vista de política social, uma revolução aqui no Brasil, que ainda falta ser concluída. Tem muita coisa para fazer ainda, porque você não consegue desmontar todo o aparato de exclusão de 500 anos em oito anos. Mas nós temos uma base extraordinária, e eu acho que essa experiência precisa ser disseminada para outros países.

Porque algumas coisas são sagradas para nós. Você combinar crescimento econômico com inflação baixa, por exemplo. No Brasil, isso era impossível de acontecer. Você combinar aumento real dos salários e manter a inflação controlada, isso era impossível de acontecer no Brasil. Você manter uma política de exportação crescente e, ao mesmo tempo, uma política de fortalecimento do mercado interno brasileiro. Isso era impossível de acontecer!

Então, veja, todas essas coisas, todas essas coisas demonstram um grau de estabilidade nas políticas que nós fizemos, que se tiverem mais quatro ou mais oito anos de sequência nós certamente, dentro de pouco tempo, seremos a quinta economia do mundo, porque as condições estão colocadas.

E eu acho que isso tudo foi feito a partir da relação que nós estabelecemos com a sociedade. Eu tinha uma preocupação, antes de ser Presidente, que era a de definir qual seria a relação do estado com a sociedade e qual seria a relação do governo com a sociedade. Nós levamos algum tempo para que a parcela mais pobre da população, os trabalhadores organizados, começassem a ver, no exercício da Presidência, alguém deles. Hoje, milhões de brasileiros quando me vêem, eles me vêem com um deles que chegou lá, e isso deu mais credibilidade e dá mais possibilidade de a gente fazer mais coisas, e também mais irritação aos nossos adversários. Como os nossos adversários estão fragilizados nos seus partidos, utilizam de alguns meios de comunicação para fazer a grande oposição ao governo, e nós, ao invés de ficarmos nervosos, temos que ficar felizes, porque isso faz parte do processo democrático.

"Acabou o tempo em que a “casa grande” dizia o que a “senzala” tinha que fazer, acabou".

Eu digo sempre, acho que é importante dizer isso agora e não esperar outro momento, para dizer. Eu digo sempre que eu, às vezes, tenho a impressão de que tinha gente que tentava me provocar para que eu tentasse tomar uma atitude mais ríspida contra qualquer meio de comunicação, que eu tentasse fazer intervenção... E quanto mais eles me batiam, mais democracia; e quanto mais batiam, mais liberdade de expressão, até todo mundo perceber que só tem um juiz: é o leitor, o telespectador e o ouvinte. São eles que nos julgam. Ele só vai ler o que ele quiser ler e sabe interpretar, só vai assistir àquilo que assistir e sabe interpretar, e ele não quer mais intermediário, ele não quer mais o tal do formador de opinião pública. O cidadão coloca uma gravata, vai à televisão, dá uma entrevista e se autodenomina formador de opinião pública e acha que todo mundo vai segui-lo. Aí, você tem o presidente de uma Central Única, aqui no Brasil, que representa milhões de trabalhadores, esse não é formador. Então, essas coisas foram caindo por terra. O povo brasileiro não quer intermediário. Ele quer falar pela sua boca, enxergar pelos seus olhos e tomar decisões pela sua consciência. Acabou o tempo em que a “casa grande” dizia o que a “senzala” tinha que fazer, acabou.

"Na hora em que o povo for bem informado, todo mundo vai estar bem informado".


O povo brasileiro não tem possibilidade de ouvir os seus discursos, nem de ler. Só quem vai a um ato, então a imprensa fica um pouco de intermediária. Além de ser Presidente da República, tem a popularidade que tem. Só quem tem a chance de ir a um comício ou a um ato de governo tem a possibilidade de ouvi-lor. O senhor não acharia que seria necessário ter espaços em que o Presidente da República prestasse contas, falasse? Isso não é uma censura, uma limitação à liberdade de expressão, que a pessoa que é eleita e reeleita não possa... que seja às 3h da manhã do sábado, mas que diga: “Bom, na TV tal, o Presidente da República vai falar o que ele acha”. O senhor não acha que esse espaço é uma coisa que falta à democracia?

Presidente Lula: Olhe, eu temo por uma coisa oficial. Isso termina não tendo credibilidade. Pode até ter credibilidade durante um tempo, mas depois perde a credibilidade. Veja, eu tenho um programa de rádio de cinco minutos, toda segunda-feira, que eu já acho tempo para caramba. Eu gravo todo domingo à noite, e não é impositivo, ou seja, transmite quem quiser transmitir. Nós temos a NBR, que é uma televisão do governo, que ela divulga na íntegra as coisas que os governos faz, todo discurso meu é transmitido na íntegra, de onde eu estiver, de qualquer parte do mundo e do país. E ela é bem assistida por um grupo de pessoas que acompanham o governo.

E tem a TV pública que nós estamos construindo ainda, está em um processo de fortalecimento. Nós não queremos que a TV pública seja vista como um canal para transmitir atividades do Presidente. Nós não queremos, porque ninguém aguenta isso todos os dias. Acho que os meios de comunicação, todos eles, na hora em que todos nós tivermos compromisso com a verdade, nós estaremos contemplados. Na hora em que o povo for bem informado, todo mundo vai estar bem informado. Eu não acho que o Estado deva ter uma coisa oficial para transmitir. Acho que o Estado tem que ter uma TV pública que tenha uma programação de qualidade, competitiva no conteúdo, na forma. E acho que o Estado não deve nem competir com as privadas na questão de financiamento. O que o Estado precisa primar é, primeiro, pela pluralidade de informações, porque é isso que vai dar credibilidade ao Estado; e, ao mesmo tempo, pela seriedade das informações. A TV pública não tem que dizer que o presidente Lula está de terno branco ou de terno preto; que o Lula é bom de bola ou se ele é ruim de bola. Se tiver esse compromisso, pode ser que um presidente ou outro não goste, mas a democracia agradecerá.

Você sabe que eu primo muito a democracia, Emir, porque eu não sei se eu chegaria à Presidência se não fosse a democracia. Eu vejo, por exemplo, aquela foto do primeiro governo da Revolução Russa, você não tem um metalúrgico ali, na direção. E assim, normalmente, em várias revoluções, a direção é toda de classe média, intelectual... o peão está lá para trabalhar, tem pouca gente. Aí, aqui nós conseguimos democraticamente criar um partido com a maioria de trabalhadores, chegar à Presidência da República, em 20 anos. Eu lembro da primeira reunião que eu fiz, em junho de 1990, quando nós convocamos em São Paulo, no Hotel Danúbio, a primeira reunião da esquerda da América Latina. Por que, por que, hein?


Emir Sader: Oitenta...

Presidente Lula: Noventa. Eu tinha saído derrotado da eleição de [19]89, mas tinha saído fortalecido. Porque, em [19]82, eu fui candidato a governador de São Paulo, e eu fui o quarto colocado; eu tive 1.25 milhão de votos. E eu fiquei arrasado, eu me senti o mais insignificante dos seres humanos de ter tido só 1,25 milhão de votos. E o meu partido já tinha uma propaganda que era uma loucura, não poderia aparecer a gente falando na televisão. Aparecia uma voz dizendo o seguinte: “Luiz Inácio Lula da Silva: ex-tintureiro, ex-alfaiate, ex-engraxate, ex-torneiro mecânico, ex-sindicalista, ex-preso político. Um brasileiro igualzinho a você”. Aí, tinha outro que aparecia o seguinte: “Altino Dantas: filho de general, condenado a 96 anos de cadeia”. “Athos Magno: sequestrou o avião...” Ou seja, parecia mais um prontuário policial... boletim de ocorrência do que uma campanha política.

E eu, então, fiquei muito triste porque eu perdi para o Montoro. Aí, certa vez, eu fui a Cuba e, conversando com o Fidel, ele falou: “Ô Lula, você já se deu conta em que lugar do mundo um operário teve 1,25 milhão de votos? Não tem isso, Lula! Então, você tem que achar estupenda essa votação que você teve!”. E aí eu passei a achar que a minha derrota foi uma vitória. Então, em [19]89, eu tive 40 e poucos por cento dos votos no segundo turno, e eu achei que era possível a gente consolidar a democracia na América Latina. Então, convocamos todos os partidos de esquerda. Da Argentina vieram quatro ou cinco, da República Dominicana, dez ou 12, porque tinha grupos de esquerda de dois, de três... Eles não conversavam entre eles. Eu brinco sempre que a única coisa que unificava aquela esquerda ali era o Maradona, porque a Argentina estava na Copa do Mundo. E o que aconteceu? Nós tiramos o fórum de São Paulo, passamos a nos reunir e hoje todos os partidos chegaram ao poder.

Durante um encontro em El Salvador, eu não quis receber o Chávez. Não queríamos que ele participasse do fórum porque era golpista, na época. Então, hoje, você pega a América Latina, todo mundo que participou do Fórum de São Paulo chegou ao poder pela via do voto. Então, eu acho isso extraordinário. As pessoas aprenderam. Como é que um índio chegava ao poder na Bolívia se não fosse a participação popular? Eu acho que essa é a revolução: você pega Mandela na África do Sul, Evo Morales na Bolívia, Lula aqui no Brasil e Obama nos Estados Unidos. Não é pouca coisa os americanos votarem num negro para presidente. Primeiro houve uma revolução no partido Democrata, com a vitória dele sobre uma loira dos olhos azuis. Nada contra mulheres com os olhos azuis, porque a minha tem! E depois ganhar junto ao povo americano. Então, o Obama é um presidente que ele não precisa fazer muita coisa. Ele só tem que ter a ousadia que o povo americano teve ao votar nele. Só isso. Então, eu penso que a democracia está a todo vapor na nossa querida América Latina.


O senhor não caiu na provocação de parte dos meios de comunicação distorcendo a informação ou escondendo informação. Mas eu, observando de fora, me parece que são muito poucas as informações sobre o que o governo faz, o que considero uma obrigação jornalística. Esse tipo de comportamento seria uma marca do que é chamado por alguns de imprensa golpista no Brasil?

Presidente Lula: Eu não uso a palavra golpismo. Agora, para entender é preciso acompanhar a imprensa brasileira e ver o que tentaram fazer em 2005. A elite brasileira, em [19]54, levou Getúlio a se matar. É importante lembrar que eles diziam que Juscelino não podia ser presidente, não podia ser candidato, se fosse candidato não podia ganhar, se ganhasse, não podia tomar posse e se tomasse posse, não podia governar. Era isso que eles falavam do Juscelino em [19] 55, era isso! Essa mesma elite é a elite de hoje, às vezes, não representada pelos mais velhos, mas pelos mais novos, que herdaram não apenas o patrimônio, mas, às vezes, o mesmo comportamento e a consciência política. Esse é um dado, esse é um dado objetivo. Depois levaram João Goulart a renunciar, defenderam o golpe militar.

Bem, quando eu chego à Presidência, pensaram duas coisas: “Bom, vamos respeitar a democracia e vamos deixar o operário chegar lá”. O operário chegou, e eles torciam, acreditavam piamente que eu iria ser um fracasso total e absoluto, e que a esquerda e seu operário metalúrgico iriam sucumbir na incapacidade de governar o país. Era esse o pensamento. O que aconteceu? O operário deu certo e começou a fazer mais do que eles, e aí eles se quedaram nerviosos.

Bem, eu tenho um comportamento que vem desde o movimento sindical. A democracia, para mim, não é meia palavra. A democracia é uma palavra inteira, só que alguns entendem por democracia apenas o direito do povo gritar que está com fome, e eu entendo por democracia, não o direito de gritar, mas o direito de comer. Essa é a diferença fundamental, essa é a diferença fundamental. Democracia, para mim, é permitir o direito à conquista, e não permitir apenas o direito ao protesto. Então, esse é um tema delicado, é um tema delicado, é um tema nervoso.

Nós fizemos uma conferência de Comunicação aqui no Brasil, uma grande conferência de Comunicação. Participaram alguns donos de meios de comunicação, participou o pessoal da telefonia, participou tudo que é gente de movimento social, participaram os blogueiros, muita gente participou. Agora, alguns não quiseram participar, alguns não quiseram participar. Eu não vou ficar me queixando, aqui, mas você poderia acompanhar. Primeiro, o Emir deveria te convidar para fazer uma palestra aos donos de jornais para você poder dizer o que você disse aqui, que eles têm obrigação de informar. Aqui eles não acham que têm obrigação de informar. Muitas vezes têm obrigação de desinformar.

Pega as revistas e os jornais e veja o que fizeram nesses últimos tempos. Eu duvido que tenha havido um presidente que tenha tratado a democracia com a importância que eu tratei, porque eu sei o quanto ela é importante para mim. Mas alguns compreendem diferente, eu acho normal, acho... também isso é da democracia. Mas é importante compreender o que aconteceu no Brasil. O povo brasileiro levantou a cabeça, a autoestima num nível muito extraordinário, e eu penso que só vai melhorar. Quando a gente percebe que quanto mais pluralismo a gente tiver, quanto mais opções a gente tiver, mais bem informado o povo será, porque aí o povo tem uma cesta de informações.

Daí porque eu acho importante a revolução da internet, que muita gente ainda não compreende ou não quer compreender. Mas, hoje, tudo depois da internet está velho, tudo. Está tudo velho, porque a internet é tempo real, ou seja, eu acabo de dar uma entrevista coletiva, eu venho à minha sala, em 30 segundos, eu ligo lá, já estão todas as notícias no mundo inteiro. Não sei como é que o mundo vai sobreviver a essa avalanche de possibilidade de informações que a sociedade tem. As pessoas interagem, as pessoas interagem, as pessoas respondem, as pessoas criticam, as pessoas se sentem co-feitoras da notícia, então eu acho isso extraordinário.


O senhor mencionou o que ocorreu com Getúlio Vargas e responsabilizou as elites por muitos dos golpes de Estado cometidos e muitas das barbaridades que foram cometidas na América Latina. Há alguns dias, Noam Chomsky disse que o neoliberalismo e as transnacionais estão provocando maior destruição que a conquista colonial, e houve quem o tenha contestado...Mas ele insistiu...

Presidente Lula: Quem contestou?


Intelectuais o contestaram, entre eles gente da direita. Mas, de novo, surgiu essa questão das elites. O senhor alguma vez já desenvolveu isso, com relação às elites da América Latina e seus problemas de crescimento e de alcançar a democracia?

Presidente Lula: Apenas uma coisa para que a gente não cometa injustiça. É preciso diferenciar também que dentro da elite há vários setores. Você tem empresários brasileiros que são empresários de alta qualidade, empresários com uma forte visão nacional, com uma visão desenvolvimentista. Quando eu falo, eu falo da elite política, aqueles que decidem o destino do país. E na América Latina, nós tivemos uma mentalidade colonizada, até poucos dias. Até poucos dias, na Argentina, os governantes ficavam discutindo quem era mais amigo dos Estados Unidos, ou quem era mais amigo da Europa; aqui no Brasil, a mesma coisa. Vamos ser francos: depois do pequeno período Duhalde, com a entrada do Kirchner e da Cristina, você pode ter discordância – e é legítimo ter discordância –mas houve uma mudança na Argentina, com a visão dela do mundo de mais independência, de mais soberania. O mesmo aconteceu no Brasil, na Venezuela, no Equador, ou seja, está acontecendo no mundo.

"Eu nunca aceitei a idéia de ficar sentado sobre nossos erros, apenas criticando o imperialismo".

Então, o que eu acho? Eu nunca aceitei a idéia de ficar sentado sobre nossos erros, apenas criticando o imperialismo. “Ah, nós somos pobres por causa do imperialismo americano; nós estamos doentes por causa do imperialismo americano; não aconteceu por causa do imperialismo americano”. Isso é meia verdade. A outra verdade é que a elite política de cada país é que se subordinou quando não precisaria ser subordinada. Então, é mais fácil a gente ficar criticando os outros em vez de olhar os nossos defeitos.

Eu acho uma vergonha aquele muro do México e dos Estados Unidos. Acho uma vergonha, depois de toda a glorificação da derrubada do Muro de Berlim, a gente ter o muro do México e o muro de Israel. Acho muito feio para a humanidade. Eu acho que o único muro que nós deveríamos assimilar era a Muralha da China, que virou uma coisa turística. Os demais são muros segregadores, e ninguém fala nada, ninguém fala nada. Você não vê fotografia do muro separando o México dos Estados Unidos, nos meios de comunicação.

Acho isso grave. Acho que a gente não pode ficar jogando a culpa nos outros. Nós temos que saber o seguinte: onde nós falhamos, enquanto elite política, enquanto elite intelectual, enquanto povo, onde é que nós falhamos? Na construção da nossa imagem, da nossa personalidade, da nossa riqueza. Então, eu acho que essa é a discussão que nós precisamos fazer. Porque é muito fácil, por exemplo, o Chávez falar que a Venezuela era pobre por causa dos ianques, que estavam explorando lá, a PDVSA. Não, a Venezuela era pobre porque muita gente da elite da Venezuela se beneficiava com o comportamento dos americanos. Então, eu acho que essas coisas precisam ser ditas de forma muito categórica. Não foram os ianques que levaram a Bolívia ao empobrecimento. Eles podem ter feito políticas para a Bolívia, adotadas pela elite política da Bolívia, que levou o povo da Bolívia àquele empobrecimento. O que eu quero dizer é que a gente não pode apenas criticar os de fora sem compreender os serviçais de dentro.

Fonte: Carta Maior

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Estudo sobre o LAZARILLO DE TORMES

Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Disciplina: FLM0617 – Literatura Espanhola: século XVI
Profa Maria Augusta da Costa Vieira

Aluno William Mendes de Oliveira – matrícula 3504053

(É PERMITIDA A REPRODUÇÃO, DESDE QUE CITADA A FONTE E O AUTOR)

Leitura do Lazarillo de Tormes com comentários e citações da obra e síntese, ao final, de análise interpretativa de Rosa Navarro Durán


Uma vida em sete atos: a aprendizagem de Lázaro


Introdução

Faço aqui uma leitura da obra Lazarillo de Tormes, edição de Antonio Rey Hazas, com algumas citações mais importantes por capítulo e com uma síntese ao final de um estudo interpretativo muito interessante de Rosa Navarro Durán.


Prólogo

O prólogo tinha papel muito importante nas obras daquele período. No Lazarillo não é diferente, pois este prólogo contém chaves para uma boa compreensão da história ao final.

Quem está escrevendo? Por que e para quem se está escrevendo? São perguntas que têm sinais no prólogo e que ao final terão uma amarração com o início ao formato de moldura da obra.

A história da vida de Lázaro é contada desde o início, por opção dele mesmo, para melhor compreensão ao final, por parte do recebedor da carta – o leitor original. A carta é resposta a outra perguntando sobre “o caso”, que depois entendemos ser de suspeita de casamento fajuto entre Lázaro e amante do padre local, para encobrir atos ilícitos do mesmo.

Iremos ver passo a passo, ou seja, capítulo a capítulo, a dura aprendizagem de vida do jovem Lázaro de Tormes.


Tratado primero

Cuenta Lázaro su vida y cúyo hijo fue

"Pues sepa Vuestra Merced, ante todas cosas, que a mí llaman Lázaro de Tormes, hijo de Tomé Gonzales y de Antona Pérez, naturales de Tejares, aldea de Salamanca. Mi nacimiento fue dentro del río Tormes, por la cual causa tomé el sobrenombre, y fue desta manera: mi padre, que Dios perdone, tenía cargo de proveer una molienda de una aceña que está ribera de aquel río, en la cual fue molinero más de quince años; y, estando mi madre una noche en la aceña, preñada de mí, tomóle el parto y parióme allí; de manera que con verdad me puedo decir nacido en el río... "

Assim começa o relato, ou melhor dizendo, a resposta de Lázaro a uma pessoa tratada aqui por Vuestra Merced.


A MORTE DO PAI:

"En este tiempo se hizo cierta armada contra moros (la expedición de los Gelves), entre los cuales fue mi padre (...), con cargo de acemilero de un caballero que allá fue, y con su señor, como leal criado, feneció su vida. "


SUA MÃE SE VIRA COMO PODE:

"Mi viuda madre, como sin marido y sin abrigo se viese, determinó arrimarse a los buenos por ser uno dellos (MAS) (...) Ella y un hombre moreno (um negro, ou seja, um mouro), de aquellos que las bestias curaban, vinieron en conocimiento (se amancebaram). "


LÁZARO É DADO A UM CEGO

Depois que sua mãe está sozinha novamente, entrega o filho a um cego.

"En este tiempo vino a posar al mesón un ciego, el cual, pareciéndole que yo sería para adestralle, me pidió a mi madre, y ella me encomendó a él, diciéndole cómo era hijo de un buen hombre, el cual, por ensalzar la fe, había muerto en la de los Gelves, y que ella confiaba en Dios no saldría peor hombre que mi padre (...) Y así le comencé a servir y adestrar a mi nuevo y viejo amo. "


LÁZARO SOFRE PRIMEIRA BURLA

O cego dá a primeira lição de moral no garoto. Não seja tonto e aprenda a ser mais esperto que um velho.

"- Lázaro, llega el oído a este toro (na verdade, uma pedra em formato de porco) y oirás gran ruido dentro dél.

Yo simplemente, llegué, creyendo ser ansí; y como sintió que tenía la cabeza par de la piedra, afirmó recio la mano y diome una gran calabazada en el diablo del toro, que más de tres días me duró el dolor de la cornada, y díjome:

- Necio, aprende, que el mozo del ciego un punto ha de saber más que el diablo

(…)

Y fue ansí, que, después de Dios, , éste me dio la vida y, siendo ciego, me alumbró y adestró en la carrera de vivir. "


O BURLADO VIRA BURLADOR:

Eles estão na região de Toledo.

Como última aprendizagem de seu convívio com o cego, isso depois de muitas burlas um com o outro, Lázaro se vinga da cornada na pedra do início de sua servidão.

Lázaro leva o velho cego até uma praça, o põe em frente a um poste, finge estar pulando um riacho e pede que o velho faça o mesmo. O cego pula com toda força, mete a cara no poste e o garoto se despede dele tendo vingado a porrada na pedra que tomou tempos atrás.

"- Tío, éste es el paso más angosto que en el arroyo hay.

(...)

- Ponme bien derecho y salta tú el arroyo.

(...)

--¡Sus! Saltá todo lo que podáis, porque deis deste cabo del agua.

Aun apenas lo había acabado de decir, cuando se abalanza el pobre ciego como cabrón, y de toda su fuerza arremete, tomando un paso atrás de la corrida para hacer mayor salto, y da con la cabeza en el poste, que sonó tan recio como si diera con una gran calabaza, y cayó luego para atrás, medio muerto y hendida la cabeza.

- ¿Cómo, y olistes la longaniza y no el poste? ¡Olé, olé! – le dije yo.

Y déjole en poder de mucha gente que lo había ido a socorrer, y tomo la puerta de la villa en los pies de un trote, y antes que la noche viniese di comigo en Torrijos. No supe más lo que Dios dél hizo, ni curé de lo saber. "


Tratado segundo


Cómo Lázaro se asentó con un clérigo, y de las cosas que con él pasó

"Otro día, no paresciéndome estar allí seguro, fuime a un lugar que llaman Maqueda, adonde me toparon mis pecados con un clérigo que, llegando a pedir limosna, me preguntó si sabía ayudar a misa. Yo dije que sí, como era verdad; que, aunque maltratado, mil cosas buenas me mostró el pecador del ciego, y una dellas fue ésta. Finalmente, el clérigo me recibió por suyo.

Escapé del trueno y di en el relámpago..."


NA VIDA, HÁ SEMPRE ESPAÇO PARA AS COISAS PIORAREM

Se Lázaro já sofria de fome na mão do cego, agora ele iria beirar a morte por inanição.

"Finalmente, yo me finaba de hambre."


LÁZARO SÓ COMIA NOS FUNERAIS

Há uma parte muito interessante, onde Lázaro descreve como rezava para que alguém morresse, pois assim ele poderia comer no funeral. A ironia é tanta que ele diz que Deus matava um de vez em quando em auxílio de sua vida.

"Porque en todo el tiempo que allí estuve, que serían cuasi seis meses, solas veinte personas fallecieron, y éstas bien creo que las maté yo o, por mejor decir, murieron a mi recuesta; porque, viendo el Señor mi rabiosa y continua muerte, pienso que holgaba de matarlos por darme a mí vida."

Era um costume da época e tem até o dito: "el muerto al hoyo y el vivo al bollo"


POR QUE LÁZARO NÃO IA EMBORA?

"Pensé muchas veces irme de aquel mezquino amo, mas por dos cosas lo dejaba: la primera, por no me atrever a mis piernas, por temer de la flaqueza que de pura hambre me venía; y la otra, consideraba y decía: 'Yo he tenido dos amos: el primero traíame muerto de hambre, y, dejándole, topé con estotro, que me tiene ya con ella en la sepoltura. Pues si déste desisto y doy en otro más bajo, ¿qué será sino fenecer?' "


MAS, NA VIDA TAMBÉM TEM ESPAÇO PARA DIAS MELHORES

Já quase morto de fome, aparece o anjo salvador de Lázaro. Um senhor que mexe com quinquilharias lhe consegue uma chave para o baú do clérigo, onde este guardava as comidas.

A partir de então, segue uma sequência de aventuras entre roubar pão do clérigo e este cessar o roubo, e Lázaro pensa nova forma de roubar alimento.


A NECESSIDADE TRAZ A ENGENHOSIDADE

"Como la necesidad sea tan gran maestra, viéndome con tanta siempre, noche y día, estaba pensando la manera que ternía (tendría) en sustentar el vivir. Y pienso, para hallar estos negros remedios, que me era luz la hambre, pues dicen que el ingenio con ella se avisa, y al contrario con la hartura, y así era por cierto en mí."

E aqui vale um outro refrão famoso: "Donde una puerta se cierra, otra se abre"


RATOEIRA: UMA FONTE DE ALIMENTO

Assim que o velho suspeitou que eram ratos que comiam os alimentos em seu baú, tapou todos os buracos. Como Lázaro seguia roubando alimento, passou a colocar uma ratoeira com deliciosos pedaços de queijo no baú. Foi uma festa para nosso personagem.

"Luego buscó prestada una ratonera, y, con cortezas de queso que a los vecinos pedía, contino el gato estaba armado dentro del arca, lo cual era para mí singular auxilio; porque, puesto caso que yo no había menester muchas salsas para comer, todavía me holgaba con las cortezas del queso que de la ratonera sacaba, y, sin esto, no perdonaba el ratonar del bodigo."

O RATO VIRA SERPENTE, QUE FOI PEGA PELO SILVO

Após mais peripécias, o clérigo passou a suspeitar que era uma serpente que roubava sua comida no baú. Uma noite, Lázaro dormindo com a chave do baú na boca, passou a roncar e o ar passando pela chave parecia o silvo da serpente. Acabou-se o que era doce!

O velho deu-lhe uma paulada na cabeça achando que a serpente estava ali e descobriu a tramóia de Lázaro.

Assim o clérigo o despediu e mandou procurar outro lugar pra viver.

"- Lázaro, de hoy más eres tuyo y no mío. Busca amo y vete con Dios, que yo no quiero en mi compañia tan diligente servidor. No es posible sino que hayas sido mozo de ciego.

Y, santiguándose de mí, como si yo estuviera endemoniado, se torna a meter en casa y cierra su puerta."


Tratado tercero

Cómo Lázaro se asentó con un escudero, y de lo que le acaesció con él

"Desta manera me fue forzado sacar fuerzas de flaqueza y, poco a poco, con ayuda de las buenas gentes, di comigo en esta insigne ciudad de Toledo, adonde, con la merced de Dios, dende a quince días se me cerró la herida..."


LÁZARO ENCONTRA (É ENCONTRADO POR) SEU TERCEIRO AMO

"- Mochacho, ¿buscas amo?

Yo le dije:

- Sí, señor.

- Pues vente tras mí - me respondió -, que Dios te ha fecho merced en topar comigo. Alguna buena oración rezaste hoy."

Dessa maneira, passa Lázaro a servir ao seu terceiro amo - um escudeiro.

NOVO AMO: NOVA E VELHA FOME

Logo no primeiro dia, Lázaro descobre que teria que estar por sua conta para não morrer de fome. E para piorar, ainda iria ter que conseguir alimento a seu amo também.

"- Pues, aunque de mañana, yo había almorzado, y cuanto ansí como algo, hágote saber que fasta la noche me estoy ansí. Por eso, pásate como pudieres, que después cenaremos.

Vuestra Merced (a quem Lázaro escreve) crea, cuando esto le oí, que estuve en poco de caer de mi estado, no tanto de hambre como por conoscer de todo en todo la fortuna serme adversa. Allí se me representaron de nuevo mis fatigas y torné a llorar mis trabajos. Allí se me vino a la memoria la consideración que hacía cuando me pensaba ir del clérigo, diciendo que, aunque aquél era desventurado y mísero, por ventura toparía con otro peor. Finalmente, allí lloré mi trabajosa vida pasada y mi cercana muerte venidera. Y con todo, disimulando lo mejor que pude, le dije:

- Señor, mozo soy que no me fatigo mucho por comer, bendito Dios. Deso me podré yo alabar entre todos mis iguales por de mejor garganta, y ansí fui yo loado della fasta hoy día de los amos que yo he tenido."

Pela primeira vez, Lázaro confessou ter pedido a Deus sua morte.


APESAR DA MISÉRIA, LÁZARO SE COMPADECE COM SEU AMO

Após conhecer melhor a situação do escudeiro, um homem sem posse alguma, que vive de sua "honra" e não tem nada que comer e beber, Lázaro se compadece com sua miséria e passa a arranjar comida para os dois.

Lázaro lhe tem simpatia porque ao menos ele não é mal e canalha como eram o cego e o clérigo.


LÁZARO SE VÊ SÓ NOVAMENTE, MAS FOI O AMO QUEM FUGIU

Ao final da convivência, o amo de Lázaro precisa fugir de Toledo devido a suas dívidas e nosso jovem mancebo se vê sozinho novamente.

"Así, como he contado, me dejó mi pobre tercero amo, do acabé de conocer mí ruin dicha, pues, señalándose todo lo que podría contra mí, hacía mis negocios tan al revés, que los amos, que suelen ser dejados de los mozos, en mí no fuese ansí, mas que mi amo me dajase y huyese de mí."


Tratado cuarto

Cómo Lázaro se asentó con un fraile de la Merced, y de lo que le acaesció con él

Este capítulo é tão pequeno e fala tanto por si que o melhor é deixá-lo aqui in totum.

"Hube de buscar el cuarto, y éste fue un fraile de la Merced, que las mujercillas que digo me encaminaron; al cual ellas le llamaban pariente. Gran enemigo del coro y de comer en el convento, perdido por andar fuera, amicísimo de negocios seglares y visitar: tanto, que pienso que rompía él más zapatos que todo el convento. Éste me dio los primeros zapatos que rompí en mi vida; mas no me duraron ocho días, ni yo pude, con su trote, durar más. Y por esto, y por otras cosillas que no digo, salí dél."


O capítulo é bastante enigmático e podemos perceber denúncia, vergonha e receio.

Os indícios são de que o frade tinha relações carnais com as prostitutas. Que ele gostava muito das coisas mundanas (“negocios seglares”).

Trote: pode ser constante "ir e vir" como também aquilo que ocorre no ato sexual.

E no final, o motivo de ir-se, pode ser por um motivo inconfessável.

Várias dessas dúvidas são levantadas pelo responsável da edição que tenho - Antonio Rey Hazas.

Teríamos aqui um caso de pedofilia, problema muito comum nos dias de hoje e conhecido nas igrejas?


Tratado quinto

Cómo Lázaro se asentó con un buldero, y de las cosas que con él pasó


Explicação de Rey Hazas:

“Buldero: el clérigo encargado de predicar y vender las bulas, o indulgencias concedidas por el Papa, que permitían no realizar el ayuno durante la Cuaresma y otros privilegios”.

A parte mais importante deste capítulo na vida de Lázaro foi aprender a burlar como ninguém. Depois de aprender a burla armada entre o clérigo e el alguacil (uma espécie de juiz de primeira instância) o personagem vê uma forma de levar a vida.

"Cuando se hizo el ensayo, confieso mi pecado, que también fui dello espantado y creí que ansí era, como otros muchos; mas, con ver después la risa y burla que mi amo y el alguacil llevaban y hacián del negocio, conocí cómo había sido industriado por el industrioso y inventivo de mi amo. Y, aunque mochacho, cayóme mucho en gracia, y dije entre mí: '¡Cuántas destas deben de hacer estos burladores entre la inocente gente!'

Finalmente, estuve con este mi quinto amo cerca de cuatro meses, en los cuales pasé también hartas fatigas."


Tratado sexto

Cómo Lázaro se asentó con un capellán, y lo que con él pasó

Também aqui temos um capítulo tão curto e, quiçá metafórico, que o melhor é deixá-lo inteiro.

"Después desto, asenté con un maestro de pintar panderos, para molelle los colores, y también sufrí mil males.

Siendo ya en este tiempo buen mozuelo, entrando un dia en la iglesia mayor, un capellán della me recibió por suyo, y pusome en poder un buen asno y cuatro cántaros y un azote, y comencé a echar agua por la cibdad. Éste fue el primer escalón que yo subí para venir a alcanzar buena vida, porque mi boca era medida. Daba cada día a mi amo treinta maravedís ganados, y los sábados ganaba para mí, y todo lo demás, entre semana, de treinta maravedís.

Fueme tan bien en el oficio que, al cabo de cuatro años que lo usé, con poner en la ganancia buen recaudo, ahorré para me vestir muy honradamente de la ropa vieja, de la cual compré un jubón de fustán viejo y un sayo raído de manga tranzada y puerta, y una capa, que había sido frisada, y una espada de las viejas primeras de Cuéllar. Desque me vi en hábito de hombre de bien, dije a mi amo se tomase su asno, que no quería más seguir aquel oficio."

Rey Hazas explica o suposto sentido metafórico para "maestro de pintar panderos"

"La referencia debe ser maliciosa, porque de otro modo no se explica su inclusión en la novela. El maestro de pintar panderos podría ser un 'vendedor de panderos', pero no en sentido recto. Quizá el significado sea erótico, dado que una pícara non sancta, como Justina, se define como 'emperatriz de los panderos', en una romería, y que había un refrán que decía 'ir romera y volver ramera' (...) En fin, maestro en 'vender mujeres', o 'su más preciada prenda', si se quiere: alcahuete o proxenete."

Apesar da "profissão" de seu sexto amo e capelão, é com ele que Lázaro aprende o dom de lidar com o vinho e de faturar para seu amo e para si mesmo com os negócios da bebida.


Tratado séptimo

Cómo Lázaro se asentó con un alguacil, y de lo que le acaesció con él

"Despedido del capellán, asenté por hombre de justicia con un alguacil; mas muy poco viví con él, por parecerme oficio peligroso; mayormente, que una noche nos corrieron a mí y a mi amo a pedradas y a palos unos retraídos, y a mi amo, que esperó, trataron mal, mas a mí no me alcanzaron. Con esto renegué del trato..."

Então, nosso personagem se assenta com uma profissão real - pregoeiro, a única ocupação onde alguém como ele melhoraria na vida, segundo Lazarillo.


“Pregonar” segundo a Real Academia Espanhola:


“pregonar.

(Del lat. praeconāre).

1. tr. Publicar, hacer notorio en voz alta algo para que llegue a conocimiento de todos.

2. tr. Dicho de una persona: Decir y publicar a voces la mercancía o género que lleva para vender.

3. tr. Publicar lo que estaba oculto o lo que debía callarse.

4. tr. Alabar en público los hechos, virtudes o cualidades de alguien.

5. tr. p. us. Declarar a alguien malhechor, proscribir”.


“Pregonero” pela explicação de Rey Hazas:

“Era uno de los oficios reales más viles que se podían tener, parangonable al de verdugo; aunque sus ingresos no eran desdeñables, pues en las almonedas, por ejemplo, cobraban un 30 por 1000”.

Veja como lhe caiu bem a profissão: "Hame sucedido tan bien, yo le he usado tan fácilmente, que casi todas las cosas al oficio tocantes pasan por mi mano; que en toda la cibdad el que ha de echar vino a vender o algo, si Lázaro de Tormes no entiende en ello, hacen cuenta de no sacar provecho"

Termina o relato da vida de Lazarillo de Tormes com ele mesmo explicando a "vuestra merced" que "el caso" de algumas más línguas insinuarem que sua mulher é amante do arcipreste não passa de boato por ser sua mulher muito boa e ele ocupar uma boa posição e ser próximo e servidor do arcipreste da cidade de Toledo.


Leitura de Rosa Navarro Durán: uma leitura possível do Lazarillo

"Suplico a vuestra merced..." - Invitación a la lectura del Lazarillo de Tormes, de Rosa Navarro Durán

A leitura do texto de Rosa Navarro Durán nos chama a atenção para vários pontos importantes na leitura do Lazarillo que, em geral, passam desapercebidos ao leitor comum, ou melhor, ao leitor que não esteja muito atento e de olhos críticos.


Questões de edição

O prólogo é o primeiro caso analisado. Tanto está falando nele o autor da obra quanto o personagem da mesma. Isso nos remete a um provável problema de edição.

Depois vêm os nomes dos capítulos ou "tratados": todos têm o nome relacionado com as aventuras por que passou o personagem com cada amo que teve em sua vida. Só o primeiro capítulo não segue o padrão.

Isso aparenta ser outro problema de edição, pois é provável que o editor criou o título ao precisar separar o último parágrafo do prólogo, que já pertenceria ao primeiro tratado, onde o personagem conta sua origem e as mazelas por que passou com o seu primeiro amo, o cego.

Outra pergunta interessante que a autora faz é com relação ao personagem que escreve sobre sua vida com tanta riqueza de detalhes a uma pessoa que ele não conhece "vuestra merced". Também é curioso como um menino que viveu o que ele mesmo nos descreve conseguiu aprender a escrever tão bem!


O argumento da obra

É muito perspicaz a observação da autora sobre a questão do argumento da obra, que estaria faltando.

Lázaro estaria escrevendo a "vuestra merced" com uma razão clara. Explicar sobre "o caso" de seu casamento com uma criada do arcipreste. A dúvida seria se o casamento era de fachada ou não, para encobrir desvios de conduta do arcipreste.

Descobrimos ao final do relato de Lázaro tanto o argumento* da obra quanto o fato de que o "tu" destinatário era pessoa conhecida do arcipreste. O verdadeiro interesse de "vuestra merced" era no arcipreste e não na vida de Lázaro.

"*Argumento es una breve exposición del contenido de la obra que siempre se sitúa entre el prólogo y el inicio." (Rosa Navarro Durán)


“Vuestra Merced”

Com um estudo muito perspicaz, Rosa Durán conclui que "Vuestra Merced" é uma mulher.

"Al darnos cuenta de que 'Vuestra Merced', el destinatario del relato de Lázaro, es una mujer, cobra sentido el 'ella' y toda la fórmula: 'Hablando con reverencia de Vuestra Merced, porque está ella delante'. Y también se ve la importancia de que no viva en Toledo, porque si así hubiera sido, Lázaro no hubiera podido jurar de su esposa 'que es tan buena mujer como vive dentro de las puertas de Toledo' sin haber ofendido a la dama."


“La dama y su interés por el caso”

É impressionante a interpretação que faz Rosa Navarro Durán - uma análise toda amarrada com partes do texto, que chega à conclusão de que quem escreve a declaração sobre "o caso" é um mensageiro escrivão, enviado especialmente para ouvir o relato de Lázaro de Tormes sobre seu suposto casamento com uma amante do arcipreste.

O interesse de "Vuestra Merced", uma mulher que se confessaria com o arcipreste, é de que este conte seus segredos à amante que por sua vez conte ao marido, um pregoeiro - que tem um contato muito próximo com o vinho e "in vino ueritas".

Que amarração estupenda!


Lazarillo de Tormes não é um pícaro

A conclusão que Rosa Navarro Durán nos dá sobre o Lazarillo é de que ele não é um pícaro porque ele não burla nem rouba - a não ser comida para sobreviver.

"Sólo que Lázaro de Tormes ni sabía escribir ni escribió estrictamente su autobiografía, ni fue tampoco un pícaro, porque ni estafa ni burla ni roba más que un poco de comida para sobrevivir: su vida no es picaresca; no hay más que compararla con la del pícaro por excelencia: Guzmán de Alfarache. Fue - eso sí - un bienaventurado, como su padre; sólo que Tomé González lo fue porque padeció persecución por la justicia; y él lo fue por pacífico o manso; su padre, a causa del pan, y él por el vino. No hay filo más agudo en este terreno que el del autor del Lazarillo."


Bibliografia:

ANÔNIMO. Lazarillo de Tormes. Edición de Antonio Rey Hazas. Literatura Alianza Editorial. L 5036.

NAVARRO DURÁN, Rosa. "Suplico a vuestra merced..." Invitación a la lectura del Lazarillo de Tormes. Editorial Academia del Hispanismo, 2008.

Real Academia Española. http://www.rae.es/

domingo, 26 de setembro de 2010

Refeição Cultural 57

Corrida "desafogadora", leituras escolares and things like that...

Cara, ando cansado pacas!

Quase depressivo pelo não-fazer o que gostaria e pelo que-fazer que virá nos próximos dias.

Hoje, após um momento de estresse logo pela manhã, por ter muitos textos por ler e escrever e por não conseguir descansar faz tempo, saí para correr. Foi uma saída para a corrida como se estivesse me afogando no apartamento e precisasse emergir a cabeça d'água e puxar o ar.

Corri uns 6 km e foi muito importante para mim essa meia hora de esporte. I ran and breathed!

Que estou fazendo de minha vida? A pessoal, digo?

Que fiz de meu curso de letras? Entrei na Universidade de São Paulo em 2001 porque queria ser professor. Eu acho que seria um bom professor. Além do que, eu receberia para me dedicar em tempo integral a ler e escrever, além de partilhar o conhecimento. Mas, não serei professor pois acabei focando em ser um sindicalista ao menos dedicado.

E agora, José? Já se passaram 9 anos que entrei na Usp e ainda devo matérias e já se passaram 8 anos de representação sindical e está na hora de pensar em fazer outra coisa...

Assisti ontem ao filme "Bastardos Inglórios" e não gostei do filme. Não tenho muito a comentar, não.

A refeição cultural fica por conta das leituras do fim de semana. Li um pouco de Saramago e um pouco de António Lobo Antunes. São textos e estilos muito bons.

Li hoje dois textos para escrever comentários sobre eles. Se trata de textos críticos sobre a obra "Lazarillo de Tormes". Os textos são muito herméticos e o livro, que li o ano passado e que fiz um trabalho sobre ele este ano, é muito bom.

Falta-me tempo para me dedicar a algo que gosto muito e pouco tenho de chance de usufruir - a leitura mais reflexiva.

Vamos agora para um período duro, falando como sindicalista e em termos de tempo disponível, que é a greve nacional dos bancários.

Não gostaria que ocorresse o que ocorreu nos últimos anos - interrromper as matérias que faço na Usp - mas, ao fim e ao cabo, eu acabo fazendo isso (aunque nadie tenga reconocimiento de esto, es algo necesario pero invisible. Nada más).

sábado, 25 de setembro de 2010

Leitura de "Os cus de Judas" de António Lobo Antunes, de 1979

Este é um dos livros que constam de nosso programa de Literatura Portuguesa deste semestre na Usp. Como tenho comentado neste blog, o difícil será ter tempo para a leitura completa das obras.

EXCERTOS

O estilo de Lobo Antunes é muito interessante. Estou gostando.

Os capítulos são divididos em ordem alfabética.

Como tenho feito na leitura de livros, grifo algumas frases ou construções sintáticas que me agradam.

CAPÍTULO B

"... E em Santa Margarida, aguardando o embarque, pastoreei longas bichas de soldados a caminho de um dentista demente que despovoava gengivas uivando de felicidade assassina..." p.17

"As senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os visons da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de Salazar, acompanhadas de Padre Nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico de Peniche, onde os agentes da Pide superavam em eficácia os inocentes diabos de garfo em punho do catecismo. Sempre imaginei que os pêlos dos seus púbis fossem de estola de raposa, e que das vaginas lhes escorressem, quando excitadas, gotas de Ma Griffe e baba de caniche, que abandonavam rastros luzidios de caracol na murchidão das coxas..." p.17

Cara! Que descrição ácida e maravilhosa das velhas da burguesia portuguesa apoiadoras do regime de Salazar!

Eu li os primeiros 5 capítulos entre madrugadas em aeroportos e noites mal dormidas e não havia captado a acidez da linguagem de Lobo Antunes.

Hoje reli em voz alta trechos deste livro também (como fiz com um capítulo de "A jangada de pedra" de Saramago) e foi uma descoberta.

QUE LÁSTIMA ESTAR SEMPRE CANSADO E SEMPRE SEM TEMPO PARA LER...

Diferenças entre liberdade de Imprensa e de Expressão. Em artigo de Mino Carta

Jornalista Mino Carta
É só ficarmos atentos à leitura deste excelente artigo de Mino Carta, uma referência para mim, para percebemos a diferença entre fazer ilações (acusar sem provas), informar e usar o direito constitucional de opinião


Cureau, a censora



Mino Carta 24 de setembro de 2010 às 10:00h

(fonte: Carta Capital)
 
Conta-se aqui uma história insolitamente verdadeira de uma tentativa de assalto à liberdade de imprensa. Vale insistir: esta é autêntica. Por Mino Carta


Permito-me sugerir à doutora Sandra Cureau, vice-procuradora-geral da Justiça Eleitoral, que volte a se debruçar sobre os alfarrábios do seu tempo de faculdade, livros e apostilas, sem esquecer de manter à mão os códigos, obras de juristas consagrados e, sobretudo, a Constituição da República. O erro que cometeu ao exigir de CartaCapital, no prazo de cinco dias, a entrega da documentação completa do nosso relacionamento publicitário com o governo federal nos leva a duvidar do acerto de quem a escolheu para cargo tão importante.




Refiro-me, em primeiro lugar, ao erro, digamos assim, técnico. Aceitou uma denúncia anônima para proceder contra a revista e sua editora. Diz ela conhecer a identidade do denunciante, acoberta-o, porém, sob o manto do sigilo condenado pelo texto constitucional e por decisões do Supremo Tribunal Federal. Protege quem, pessoa física ou jurídica, condiciona a denúncia ao silêncio sobre seu nome. Ou seja, a vice-procuradora comete uma clamorosa ilegalidade.



Há outro erro, ideológico. Quem deveria zelar pela lisura do embate eleitoral endossa a caluniosa afronta que há tempo é cometida até por colegas jornalistas ardorosamente empenhados na campanha do candidato tucano à Presidência. A ilação desfraldada a partir do apoio declarado, e fartamente explicado por CartaCapital, à candidatura- de Dilma Rousseff revela a consistência moral e ética, democrática e republicana dos acusadores, ou por outra, a total inconsistência. A tigrada não concebe adesão a uma candidatura sem a contrapartida em florins, libras, dracmas. Reais justificados por abundante publicidade governista.



Sabemos ser inútil repetir que a publicidade governista premia mais fartamente outras publicações. Sabemos que José Serra, ainda governador, mas de mira posta na Presidência, assinou belos contratos de compra de assinaturas com todas as maiores empresas jornalísticas do País, com exceção, obviamente, da editora de CartaCapital. Sabemos que não é o caso de esperar pela solidariedade- dos patrões da mídia e dos seus empregados, bem como das chamadas entidades de classe, sem falar da patética Sociedade Interamericana de Imprensa. Estas, aliás, se apressam a apoiar a campanha midiática que aponta em Lula o perigo público número 1 para a democracia e a liberdade de imprensa.



Nem todos os casos denunciados pela mídia nativa merecem as manchetes de primeira página, um e outro nem mesmo um pálido registro. É inegável, contudo, que dentro do PT há uma lamentável margem de manobra para aloprados de extrações diversas. CartaCapital tem dado o devido destaque a crimes como a quebra de sigilo fiscal e a deploráveis fenômenos de nepotismo e clientelismo, embora não deixe de apontar a ausência das provas sofregamente buscadas pelos perdigueiros da informação, em vão até o momento, de ligações com a campanha de Dilma Rousseff.



Vale, porém, discutir as implicações da liberdade de imprensa, e de expressão em geral. É do conhecimento até do mundo mineral que a liberdade de informar encontra seus limites no Código Penal. Se o jornalista acusa, tem de provar a acusação. E informar significa relatar fatos. Corretamente. Quanto à opinião, cada um tem direito à sua.


Muito me agrada que o Estadão e o Globo em editoriais e, se não me engano,- um colunista, tenham aproveitado a sugestão feita por mim na semana passada. Por que não comparar Lula a Luís XIV, além de Mussolini e Hitler? Compararam, para ampliar o espectro da evocação. De ditadores de extrema-direita a um monarca por direito divino, aprazível passeio pela história. Volto à carga: sinto a falta de Stalin, talvez fosse personagem mais afinada com a personalidade de Lula, aquele que ia transformar o Brasil em república socialista. Quem sabe, a tarefa fique para a guerrilheira terrorista, assassina de criancinhas.


Espero ter sido útil, com uma contribuição aos delírios de quem percebe o poder a lhe escorrer entre os dedos. A campanha midiática a favor do candidato tucano não é digna do país que o Brasil merece ser, e sim adequada ao manicômio. Aumenta o clamor de grupelhos de inconformados de uma velha-guarda que não dispensa militares de pijama, todos protagonistas de um espetáculo que fica entre a ópera-bufa e o antigo Pinel. Que tem a ver com liberdade de imprensa acusar Lula e Dilma de pretenderem “mexicanizar”, ou “venezuelizar” o Brasil? Ou enterrar a democracia?



Mesmo que o presidente não pronuncie sempre palavras irretocáveis, onde estão as provas desse terrificante projeto? Temos, isto sim, as provas em sentido contrário: os golpistas arvoram-se a paladinos de uma legalidade que eles somente ameaçam. A união da mídia já produziu alguns entre os piores momentos da história brasileira. A morte de Getúlio Vargas, presidente eleito, a resistência a Juscelino, o golpe de 1964 e suas consequências 21 anos a fio, sem contar com a oposição à campanha das Diretas Já. Ou com o apoio maciço à candidatura de Fernando Collor, à reeleição de Fernando Henrique, às privatizações vergonhosamente manipuladas.



É possível perceber agora que este congraçamento nunca foi tão compacto. Surpreende-me, por exemplo, o aproveitamento que o Estadão faz das reportagens de Veja, citada com todas as letras. Em outros tempos não seria assim, a família Mesquita tachava os Civita de “argentários” em editoriais da terceira página. As relações entre os mesmos Mesquita, os Frias e os Marinho não eram também das melhores. Hoje não, hoje estão mais unidos do que nunca. Pelo desespero, creio eu.



A união, apesar das divergências, sempre os trouxe à mesma frente quando o risco foi comum. Ameaça ardilosamente elevada à enésima potência para justificar o revide pronto e imediato. E exorbitante. A aliança destes dias tem uma peculiaridade porque o risco temido por eles é real, a figurar uma situação muito pior do que aquela imaginada até o começo de 2010. Desespero rima com conselheiro, mas como tal é péssimo. De sorte que estão a se mover para mais uma Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade. A derradeira, esperamos. Não nos iludamos, no entanto. São capazes de coisas piores.



Otimista em relação ao futuro, na minha visão vivemos os estertores de um sistema, mudança essencial ao sabor de um confronto social em andamento, sem violência, sem sangue. Diria natural, gerado pelo desenvolvimento, pelo crescimento. Donde, por mais sombrios que sejam os propósitos dos verdadeiros inimigos da democracia, eles, desta vez, no pasaran. Eles próprios se expõem a risco até ontem inimaginável. Se houver chance para uma tentativa golpista, desta vez haverá reação popular, com consequências imprevisíveis.



Episódio representativo da situação, conquanto não o mais assombroso, longe disso, é a demanda da vice-procuradora da Justiça Eleitoral para averiguar se vendemos, ou não, a nossa alma. Falo em nome de uma pequena redação que não desiste há 16 anos na prática do jornalismo honesto, pasma por estar sob suspeita ao apoiar às claras a candidatura Dilma.



Sugiro à doutora Sandra que, de mão na massa, verifique também se a revista IstoÉ recebeu lauta compensação do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema quando o acima assinado em companhia do repórter Bernardo Lerer, escreveu uma reveladora, ouso dizer, reportagem sobre Luiz Inácio da Silva, melhor conhecido como Lula, publicada em fevereiro de 1978. Ou se acomodou-se em uma espécie de mensalão ao publicar oito capas a respeito da ação de Lula à frente de uma sequência de greves entre 1978 e 1980. Ou se me locupletei pessoalmente por ter estado ao lado dele na noite de sua prisão, e da sua saída da cadeia, quando enquadrado pela ditadura na Lei de Segurança Nacional, bem como nas suas campanhas como candidato à Presidência da República. Desde o dia em que conheci o atual presidente da República, pensei: este é o cara.

 
Mino Carta


Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde. redação@cartacapital.com.br

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

SABEDORIAS EM "A JANGADA DE PEDRA" - JOSÉ SARAMAGO

O livro de Saramago é um dos quatro livros que devo (deveria) ler para o meu semestre de Literatura Portuguesa na Usp.

Como a vida não é exatamente como gostaríamos, não terei condições de ler as obras indicadas no programa.

No entanto, ao chegar do trabalho hoje, li o primeiro capítulo do livro A jangada de pedra, li em voz alta, e adorei algumas frases com observações de Saramago, às vezes, até desconcertantes.

FRASES E PENSAMENTOS...


SUPERSTIÇÃO = "CONVICÇÃO FIRME"

"Como se teria formado a arreigada superstição, ou convicção firme, que é, em muitos casos, a expressão alternativa paralela..." pag.7

Nunca havia pensado nisso. Que interessante a ideia explicativa da superstição.


O SEMPRE NÃO PODE DURAR PARA SEMPRE!


"Mas não podendo o sempre durar para sempre, como explicitamente nos tem ensinado a idade moderna..." pag. 7

Que expressão bárbara!


ATOS SEM SENTIDO SÃO OS MAIS PERIGOSOS

"... um acto que parecia não ter sentido, e esses, recordai-vos, são os que mais perigo comportam..." pag. 8

Lembrei-me de uma frase que sempre digo a respeito do ser humano. Somos imbecis por natureza. Uma hora ou outra fazemos imbecilidades. Não tem como evitar. E, muitas vezes, uma imbecilidade por nós cometida pode trazer consequências que nunca mais têm volta.


O QUE TEM DE SER, TEM DE SER...


"...O que tem de ser, tem de ser, e tem muita força, não se pode resistir-lhe, mil vezes o ouvi à gente mais velha, Acredita na fatalidade, Acredito no que tem de ser" pag.8


OS REMORSOS NÃO MORREM...

"... como um remorso vivo, que é o que são os remorsos mesmo depois de mortos" pag.9


RUMOR COMO UM SUSPIRO SEM CAUSA

"... andava um homem a passear na praia, era isto ao entardecer, quando o rumor das ondas mal se ouve, breve e contido, como um suspiro sem causa" pag. 9


NÃO FALAM DO PRÓPRIO ATO OS QUE NASCEM E OS QUE MORREM

"Quem nasce não vem a falar da barriga da mãe e quem morre não fala depois de ter entrado na barriga da terra"

É isso!

Bibliografia
SARAMAGO, José. A jangada de pedra. Companhia de Bolso. Edição 2010. (livro de 1986)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

FLC0383 - Literatura Portuguesa IV - Texto "O labirinto da saudade"

Classe de 17/09/10 do professor Helder

Texto: O Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço

Anotações em tópicos e comentários


ORIGEM DE PORTUGAL = do tipo traumática

OS LUSÍADAS = um poema épico, via de regra, é enaltecedor. No entanto, aqui é algo que enaltece e entristece ao mesmo tempo, pois o poema fala da glória e do fim dela. Sinfonia e Requiem...

Portugal = eterno destino de SUBALTERNIDADE

Século XIX = o século da esquizofrenia portuguesa total, devido às crises insolúveis...

AS CRISES levam AO SAUDOSISMO que leva AO MISTICISMO...

"MENSAGEM" de Fernando Pessoa é a expressão mais radical desse IRREALISMO PORTUGUÊS (Lourenço e prof. Helder afirmam isso)


NEO-REALISMO (segundo Lourenço)

Eles vão inventar uma nova utopia sem partilhar as ideias com o povo. Os neo-realistas enaltecem o povo, mas não o faz compreender o seu papel.

Havia uma ideologia revolucionária, mas, não tinha uma forma revolucionária.

O surrealismo teria conseguido bater nessa mesmice portuguesa, mas talvez com resultado um pouco diferente.

SALAZAR = viveu de maneira simplória para buscar uma imagem idealizada do português comum, apesar de atender sempre à elite e à burguesia.

O texto de Lourenço é de 1977/78, ou seja, depois da Revolução dos Cravos (1974).

Como sempre ao longo dos séculos, após suas crises, Portugal fica sem nada. Não tem comércio, não tem nada o que fazer.

A guerra trouxe novamente traumatismo profundo em Portugal.

Segundo Lourenço, Portugal seria sempre um "Imperialismo de 2a categoria".

Lourenço fala de um "sonambulismo incurável português".

O texto comenta a questão dos retornados das colônias, após a libertação das mesmas, porém ao chegarem em Portugal, não havia o que fazer, como manter economicamente uma população daquela.

IDEIA DO ENCOLHIMENTO DO IMAGINÁRIO

Imaginar Portugal após a perda de suas colônias e algo como imaginar São Paulo se tornando independente do Brasil. Imaginem o paulista, antigo "brasileiro", não poder dizer mais que o samba, o chimarrão, a Amazônia, o Pantanal etc pertencem ao seu imaginário, que tudo aquilo não é mais de seu pertencimento...

O que ficaria no imaginário paulista como república? Pagode e rodeio?

O IMPÉRIO PORTUGUÊS QUE FICA

A solução portuguesa para as constantes perdas de suas colônias foi a criação do conceito de "IMPÉRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA". A promoção da LUSOFONIA pelo mundo.

Ou seja, buscar o seu lugar ao sol no plano da cultura, já que sempre há problemas no campo econômico.


O prof. Helder comenta um pouco os problemas de obras e autores que trabalham com projetos de descrever povos e nações, do tipo Sérgio Buarque de Holanda, Darci Ribeiro, e os autores portugueses que fazem o mesmo.

O mecanismo corre sempre o risco de se criar estereótipos, de ser discriminatório e gerar preconceito.

domingo, 19 de setembro de 2010

FLC0383 - Literatura Portuguesa IV - Neo-realismo Português

Ainda a classe de 20/08/10 sobre NEO-REALISMO PORTUGUÊS


(Atualizado em 20/09/10 - com menos sono)


Texto de Carlos Reis


DO REALISMO AO NEO-REALISMO PORTUGUÊS

Anotações em forma de tópicos e itens importantes.

O período abrangido pelo texto vai mais ou menos de 1938-1948

Reis nega que haja semelhança entre o Realismo e o Neo-realismo. Segundo ele, os autores neo-realistas propunham inovações literárias e motivações históricas.

Professor Helder já comenta que há aqui uma contradição no que Reis diz, pois se os autores querem melhorar deficiências do Realismo do passado, então Reis já admite relação entre um movimento e outro.

Porém, mesmo admitindo relação entre os movimentos, são apresentadas diferenças entre um e outro.

O Realismo era paternalista com o leitor. Queria educar e explicar os acontecimentos. Também no Realismo, o "não engajamento" era o lugar do escritor realista.

A literatura de Eça de Queirós, por exemplo, cutucava a burguesia, mas ele não era sujeito de partido.

No Neo-realismo, o escritor assume um lugar social, todos são marxistas. Eles assumem essa posição. A intenção deles é evitar a subjetividade de julgamentos do personagem.

O Neo-realismo vai jogando informações e o leitor deve tirar as suas conclusões.

Reis diz que os Neo-realistas até conseguem não serem paternalistas (o professor Helder tem dúvidas), mas não conseguem ser menos subjetivistas.

Diferenças destacadas entre um movimento e outro:

REALISMO SÉCULO XIX
-materialismo
-o mundo é visto a partir do material, do físico, sem transcendência.
-positivismo

NEO-REALISMO SÉCULO XX
-materialismo histórico
-o mundo é visto a partir do materialismo histórico
-a história é movida pelas forças produtivas e pela luta de classes
-as lutas de classes condicionam as relações sociais
-as relações sociais e a luta de classes definem o presente e o futuro

Em síntese, a LUTA DE CLASSES move tudo.

Quando vamos ler textos neo-realistas não podemos esquecer da perspectiva marxista dos autores.

Ao escritor neo-realista cabe desalienar os leitores.

A literatura é uma forma de chamar a atenção das pessoas para as contradições sociais.

O NEO-REALISMO surge em contraste e oposição ao PRESENCISMO (Revolução presencista)


(só para recordar, tivemos no período anterior)

MODERNISMO PORTUGUÊS:
1o Orfismo (Pessoa) de 1915 a 1927
2o Presencismo de 1927 a 1939 (autores como José Régio, Branquinho da Fonseca, Miguel Torga, Adolfo Monteiro.
3o Neo-realismo de 1940 até hoje.


PRESENCISMO
Grupo pensa para dentro do sujeito, dão valor à tradição poética.


(voltando ao Neo-realismo)
Enquanto isso, o Neo-realismo cria a Revista Seara Nova (1921 - até hoje) vai atraindo os autores neo-realistas.

Oposição estética (mais que ideológica) com o Orfismo e o Presencismo.

A geração foi marcada fortemente pela 2a Guerra Mundial. Foi marcada por fortes ditaduras na Europa.

Os autores optam por modelo de fora - o comunismo da Rússia.

Falam de Máximo Gorki, Steinbach, Hemingway, Graciliano Ramos, Jorge Amado etc.

O Neo-realismo português tomou como referência a literatura brasileira. Principalmente a questão do Regionalismo Brasileiro.

sábado, 18 de setembro de 2010

Não-comentários sobre o filme 300

Cheguei a casa nesta sexta-feira cansadaço e decidi sentar-me frente a tevê e assistir a algum filme que fosse começar às 22h.

Às vezes dá certo, às vezes dá errado essas escolhas aleatórias de filmes. Outro dia fiz isso e acabei assistindo ao filme Lemon Tree e gostei muito. Dessa vez foi o filme 300 e achei o filme muito ruim! Só acabei de assistir por teimosia.

Para não ficar sem alguma digestão cultural do momento (para não dizer indigestão), acabei relendo hoje pela manhã o conto de Machado de Assis - Lágrimas de Xerxes - e a leitura e discussão em sala de aula de literatura sobre o conto. Já valeu a pena.

Quem quiser dar uma olhada no conto e no post da aula é só clicar aqui no blog mesmo.

Lágrimas de Xerxes (1899) - Conto de Machado de Assis




Leitura de contos machadianos

Além do conto postado abaixo, tenho uma postagem analisando o conto em sala de aula com o professor Hansen (FFLCH-USP). A análise é muito legal. Leitura de Lágrimas de Xerxes, M.Assis.


Publicado originalmente em 1899


Lágrimas de Xerxes

Suponhamos (tudo é de supor) que Julieta e Romeu, antes que Frei Lourenço os casasse, travavam com ele este diálogo curioso:

JULIETA. Uma só pessoa?

FREI LOURENÇO. Sim, filha, e, logo que eu houver feito de vós ambos uma só pessoa, nenhum outro poder vos desligará mais. Andai, andai, vamos ao altar, que estão acendendo as velas... (Saem da cela e vão pelo corredor).

ROMEU. Para que velas? Abençoai-nos aqui mesmo. (Pára diante de uma janela). Para que altar e velas? O céu é o altar: não tarda que a mão dos anjos acenda ali as eternas estrelas; mas, ainda sem elas, o altar é este. A igreja está aberta; podem descobrir-nos. Eia, abençoai-nos aqui mesmo.

FREI LOURENÇO. Não, vamos para a igreja; daqui a pouco estará tudo pronto. Curvarás a cabeça, filha minha, para que olhos estranhos, se alguns houver, não cheguem a reconhecer-te...

ROMEU. Vã dissimulação; não há, em toda Verona, um talhe igual ao da minha bela Julieta, nenhuma outra dama chegaria a dar a mesma impressão que esta. Que impede que seja aqui? O altar não é mais que o céu.

FREI LOURENÇO. Mais eficaz que o céu.

ROMEU. Como?

FREI LOURENÇO. Tudo o que ele abençoa perdura. As velas que lá verás arder hão de acabar antes dos noivos e do padre que os vai ligar; tenho-as visto morrer infinitas; mas as estrelas...

ROMEU. Que tem? arderão ainda, nem ali nasceram senão para dar ao céu a mesma graça da terra. Sim, minha divina Julieta, a Via-Láctea é como o pó luminoso dos teus pensamentos, todas as pedrarias e claridades altas e remotas, tudo isso está aqui perto e resumido na tua pessoa, porque a lua plácida imita a tua indulgência, e Vênus, quando cintila, é com os fogos da tua imaginação. Aqui mesmo, padre. Que outra formalidade nos pedes tu? Nenhuma formalidade exterior, nenhum consentimento alheio. Nada mais que amor e vontade. O ódio de outros separa-nos, mas o nosso amor conjuga-nos.

FREI LOURENÇO. Para sempre.

JULIETA. Conjuga-nos, e para sempre. Que mais então? Vai a tua mão fazer com que parem todas as horas de uma vez. Em vão o sol passará de um céu a outro céu, e tornará a vir e tornará a ir, não levará consigo o tempo que fica a nossos pés como um tigre domado. Monge amigo, repete essa palavra amiga.

FREI LOURENÇO. Para sempre.

JULIETA. Para sempre! amor eterno! eterna vida! Juro-vos que não entendo outra língua senão essa. Juro-vos que não entendo a língua de minha mãe.

FREI LOURENÇO. Pode ser que tua mãe não entendesse a língua da mãe dela. A vida é uma Babel, filha; cada um de nós vale por uma nação.

ROMEU. Não aqui, padre; ela e eu somos duas províncias da mesma linguagem, que nos aliamos para dizer as mesmas orações, com o mesmo alfabeto e um só sentido. Nem há outro sentido que tenha algum valor na terra. Agora, quem nos ensinou essa linguagem divina não sei eu nem ela; foi talvez alguma estrela. Olhai, pode ser que fosse aquela primeira que começa a cintilar no espaço.

JULIETA. Que mão celeste a terá acendido? Rafael, talvez, ou tu, amado Romeu. Magnífica estrela, serás a estrela da minha vida, tu, que marcas a hora do meu consórcio. Que nome tem ela, padre?

FREI LOURENÇO. Não sei de astronomias, filha.

JULIETA. Hás de saber por força. Tu conheces as letras divinas e humanas, as próprias ervas do chão, as que matam e as que curam... Dize, dize...

FREI LOURENÇO. Eva eterna!

JULIETA. Dize o nome dessa tocha celeste, que vai alumiar as minhas bodas, e casai-nos aqui mesmo. Os astros valem mais que as tochas da terra.

FREI LOURENÇO. Valem menos. Que nome tem aquele? Não sei. A minha astronomia não é como a dos outros homens. (Depois de alguns instantes de reflexão) Eu sei o que me contaram os ventos, que andam cá e lá, abaixo e acima, de um tempo a outro tempo, e sabem muito, porque são testemunhas de tudo. A dispersão não lhes tira a unidade, nem a inquietação a constância.

ROMEU. E que vos disseram eles?

FREI LOURENÇO. Coisas duras. Heródoto conta que Xerxes um dia chorou; mas não conta mais nada. Os ventos é que me disseram o resto, porque eles lá estavam ao pé do capitão, e recolheram tudo... Escutai; aí começam eles a agitar-se; ouviram-nos falar e murmuram... Uivai, amigos ventos, uivai como nos jovens dias das Termópilas.

ROMEU. Mas que te disseram eles? Contai, contai depressa.

JULIETA. Fala a gosto, nós te esperaremos.

FREI LOURENÇO. Gentil criatura, aprende com ela, filho, aprende a tolerar as demasias de um velho lunático. O que é que me disseram? Melhor fora não repeti-lo; mas, se teimais em que vos case aqui mesmo, ao clarão das estrelas, dir-vos-ei a origem daquela, que parece governar todas as outras... Vamos, ainda é tempo, o altar espera-nos... Não? teimosos que sois... Contar-vos-ei o que me disseram os ventos, que lá estavam em torno de Xerxes, quando este vinha destruir a Hélade com tropas inumeráveis. As tropas marchavam diante dele, a poder de chicote, porque esse homem cru amava particularmente o chicote e empregava-o a miúdo, sem hesitação nem remorso. O próprio mar, quando ousou destruir a ponte que ele mandara construir, recebeu em castigo trezentas chicotadas. Era justo; mas para não ser somente justo, para ser também abominável, Xerxes ordenou que decapitassem a todos os que tinham construído a ponte e não souberam fazê-la imperecível. Chicote e espada; pancada e sangue.

JULIETA. Oh! abominável!

FREI LOURENÇO. Abominável, mas forte. Força vale alguma coisa; a prova é que o mar acabou aceitando o jugo do grande persa. Ora, um dia, à margem do Helesponto, curioso de contemplar as tropas que ali ajuntara, no mar e em terra, Xerxes trepou a um alto morro feitiço, de onde espalhou as vistas para todos os lados. Calculai o orgulho que ele sentiu. Viu ali gente infinita, o melhor leite mungido à vaca asiática, centenas de milhares ao pé de centenas de milhares, várias armas, povos diversos, cores e vestiduras diferentes, mescladas, baralhadas, flecha e gládio, tiara e capacete, pelo de cabra, pele de cavalo, pele de pantera, uma algazarra infinita de coisas. Viu e riu; farejava a vitória. Que outro poder viria contrastá-lo? Sentia-se indestrutível. E ficou a rir e a olhar com longos olhos ávidos e felizes, olhos de noivado, como os teus, moço amigo...

ROMEU. Comparação falsa. O maior déspota do universo é um miserável escravo, se não governa os mais belos olhos femininos de Verona. E a prova é que, a despeito do poder, chorou.

FREI LOURENÇO. Chorou, é certo, logo depois, tão depressa acabara de rir. A cara embruscou-se-lhe de repente, e as lágrimas saltaram-lhe grossas e irreprimíveis. Um tio do guerreiro, que ali estava, interrogou-o espantado; ele respondeu melancolicamente que chorava, considerando que de tantos milhares e milhares de homens que ali tinha diante de si, e às suas ordens, não existiria um só ao cabo de um século. Até aqui Heródoto; escutai agora os ventos. Os ventos ficaram atônitos. Estavam justamente perguntando uns aos outros se esse homem feito de ufania e rispidez teria nunca chorado em sua vida, e concluíam que não, que era impossível, que ele não conhecia mais que injustiça e crueldade, não a compaixão. E era a compaixão que ali vinha lacrimosa, era ela que soluçava na garganta do tirano... Então eles rugiram de assombro; depois pegaram das lágrimas de Xerxes... Que farias tu delas?

ROMEU. Secá-las-ia, para que a piedade humana não ficasse desonrada.

FREI LOURENÇO. Não fizeram isso; pegaram das lágrimas todas e deitaram a voar pelo espaço fora, bradando às considerações: Aqui estão! olhai! olhai! aqui estão os primeiros diamantes da alma bárbara! Todo o firmamento ficou alvoroçado; pode crer-se que, por um instante, a marcha das coisas parou. Nenhum astro queria acabar de crer nos ventos. Xerxes! Lágrimas de Xerxes eram impossíveis; tal planta não dava em tal rochedo. Mas ali estavam elas; eles as mostravam, contando a sua curiosa história, o riso que servira de concha a essas pérolas, as palavras dele, e as constelações não tiveram remédio, e creram finalmente que o duro Xerxes houvesse chorado. Os planetas miraram longo tempo essas lágrimas inverossímeis; não havia negar que traziam o amargo da dor e o travo da melancolia. E quando pensaram que o coração que as brotara de si tinha particular amor ao estalido do chicote, deitaram um olhar oblíquo à terra, como perguntando de que contradições era ela feita. Um deles disse aos ventos que devolvessem as lágrimas ao bárbaro, para que as engolisse; mas os ventos responderam que não e detiveram-se para deliberar. Não cuideis que só os homens dissentem uns dos outros.

JULIETA. Também os ventos?

FREI LOURENÇO. Também eles. O Aquilão queria convertê-las em tempestades do mundo, violentas e destruidoras, como o homem que as gerara; mas os outros ventos não aceitaram a ideia. As tempestades passam ligeiras; eles queriam alguma coisa que tivesse perenidade, um rio, por exemplo, ou um mar novo; mas não combinaram nada e foram ter com o sol e a lua. Tu conheces a lua, filha.

ROMEU. A lua é ela mesma; uma e outra são a plácida imagem da indulgência e do carinho; é o que eu te disse há pouco, meu bom confessor.

JULIETA. Não, não creias nada do que ele disser, frei amigo; a lua é a minha rival, é a rival que alumia de longe o belo rosto do galhardo Romeu, que lhe dá um resplendor de opala, à noite, quando ele vem pela rua...

FREI LOURENÇO. Terão ambos razão. A lua e Julieta podem ser a mesma pessoa, e é por isso que querem o mesmo homem. Mas, se a lua és tu, filha, deves saber o que ela disse ao vento.

JULIETA. Nada, não me lembra nada.

FREI LOURENÇO. Os ventos foram ter com ela, perguntaram-lhe o que fariam das lágrimas de Xerxes, e a resposta foi a mais piedosa do mundo. Cristalizemos essas lágrimas, disse a lua, e façamos delas uma estrela que brilhe por todos os séculos, com a claridade da compaixão, e onde vão residir todos aqueles que deixarem a terra, para achar ali a perpetuidade que lhes escapou.

JULIETA. Sim, eu diria a mesma coisa. (Olhando pela janela) Lume eterno, berço de renovação, mundo do amor continuado e infinito, estávamos ouvindo a tua bela história.

FREI LOURENÇO. Não, não, não.

JULIETA. Não?

FREI LOURENÇO. Não, porque os ventos foram também ao sol, e tu que conheces a lua, não conheces o sol, amiga minha. Os ventos levaram-lhe as lágrimas, contaram a origem delas e o conselho do astro da noite, e falaram da beleza que teria essa estrela nova e especial. O sol ouviu-os e redarguiu que sim, que cristalizassem as lágrimas e fizessem delas uma estrela; mas nem tal como o pedia a lua, nem para igual fim. Há de ser eterna e brilhante, disse ele, mas para a compaixão basta a mesma lua com a sua enjoada e dulcíssima poesia. Não; essa estrela feita das lágrimas que a brevidade da vida arrancou um dia ao orgulho humano ficará pendente do céu como o astro da ironia, luzirá cá de cima sobre todas as multidões que passam, cuidando não acabar mais e sobre todas as coisas construídas em desafio dos tempos. Onde as bodas cantarem a eternidade, ela fará descer um dos seus raios, lágrima de Xerxes, para escrever a palavra da extinção, breve, total, irremissível. Toda epifania receberá esta nota de sarcasmo. Não quero melancolias, que são rosas pálidas da lua e suas congêneres; — ironia, sim, uma dura boca, gelada e sardônica...

ROMEU. Como? Esse astro esplêndido...

FREI LOURENÇO. Justamente, filho; e é por isso que o altar é melhor que o céu; no altar a benta vela arde depressa e morre às nossas vistas.

JULIETA. Conto de ventos!

FREI LOURENÇO. Não, não.

JULIETA. Ou ruim sonho de lunático. Velho lunático disseste há pouco; és isso mesmo. Vão sonho ruim, como os teus ventos, e o teu Xerxes, e as tuas lágrimas, e o teu sol, e toda essa dança de figuras imaginárias.

FREI LOURENÇO. Filha minha...

JULIETA. Padre meu, que não sabes que há, quando menos, uma coisa imortal, que é o meu amor, e ainda outra, que é o incomparável Romeu. Olha bem para ele; vê se há aqui um soldado de Xerxes. Não, não, não. Viva o meu amado, que não estava no Helesponto, nem escutou os desvarios dos ventos noturnos, como este frade, que é a um tempo amigo e inimigo. Sê só amigo, e casa-nos. Casa-nos onde quiseres, aqui ou além, diante das velas ou debaixo das estrelas, sejam elas de ironia ou de piedade; mas casa-nos, casa-nos, casa-nos...

FIM

Fonte: UOL