sábado, 13 de junho de 2009

Libertinagem - Manuel Bandeira, de 1930



Refeição Cultural

Reli hoje o livro de poemas Libertinagem, de Bandeira. Eu o releio vez por outra porque ele é muito bom e é um livro de cabeceira, em se tratando de poesia.

Lembro-me que até entrar na USP, no ano de 2001, eu não lia poesia. Eu não tinha a mínima compreensão a respeito da arte da poesia e achava que perderia tempo com aquilo.

Estou nas leituras modernistas neste feriado. Estou terminando de reler Macunaíma, de Mário de Andrade, escritor-chave da semana de arte moderna de São Paulo.

Dos poemas que mais gosto no livro, posso destacar:


CAMELÔS

Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:
O que vende balõezinhos de cor
O macaquinho que trepa no coqueiro
O cachorrinho que bate com o rabo
Os homenzinhos que jogam boxe
A perereca verde que de repente dá um pulo 
           [que engraçado
E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão 
           [coisa alguma.

Alegria das calçadas
Uns falam pelos cotovelos:
- "O cavalheiro chega em casa e diz: Meu filho, vai 
           [buscar um pedaço de banana pra eu acender o 
           [charuto. Naturalmente o menino pensará: 
           [Papai está malu..."

Outros, coitados, têm a língua atada.

Todos porém sabem mexer nos cordéis com o tino 
            [ingênuo de dimiurgos de inutilidades.
E ensinam no tumulto das ruas os mitos heróicos 
            [da meninice...
E dão aos homens que passam preocupados 
            [ou tristes uma lição de infância.


Comentário: décadas depois a imagem do poema é a mesma de hoje!

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O CACTO

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados 
            [da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, 
            [carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra 
            [de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante 
            [vinte e quatro horas privou a cidade 
            [de iluminação e energia:

- Era belo, áspero, intratável.

(Petrópolis, 1925)


Comentário: esse seria o Bandeira da época em uma autoimagem? Belo, áspero, intratável!

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E agora, o maravilhoso poema Poética!


POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto 
          [expediente protocolo e manifestações 
          [de apreço ao Sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar 
          [no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja 
            [fora de si mesmo

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário 
            [do amante exemplar com cem modelos 
            [de cartas e as diferentes maneiras de agradar 
            [às mulheres, etc

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

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E agora, vamos ao apaixonante Evocação do Recife!!!

EVOCAÇÃO DO RECIFE

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritssatd dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois - 
           Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância

A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado 
     [e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê 
     [na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada 
     [com cadeiras, mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:

              Coelho sai!
              Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:

              Roseira dá-me uma rosa
              Craveiro dá-me um botão
              (Dessas rosas muita rosa
              Terá morrido em botão...)

De repente
                    nos longos da noite
                                                      um sino

Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia 
       [ir ver o fogo

Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
                            ...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
                            ...onde se ia pescar escondido

Capiberibe
- Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
                          Foi o meu primeiro alumbramento

Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços 
       [redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos 
       [destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
                      Cavalhadas

E eu me deitei no colo da menina e ela começou 
        [a passar a mão nos meus cabelos

Capiberibe
- Capibaribe

Rua da União onde todas as tardes passava 
        [a preta das bananas com o xale vistoso 
        [de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
                     que se chamava midubim e não era 
                     [torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
                       Ovos frescos e baratos
                       Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
                      Ao passo que nós
                      O que fazemos
                      É macaquear
                      A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu 
      [não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam

Recife...
               Rua da União...
                                          A casa de meu avô...

Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife...
                    Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro 
       [como a casa de meu avô.

Rio, 1925

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(Esse poema pode ser a minha oração)

ORAÇÃO NO SACO DE MANGARATIBA

Nossa Senhora me dê paciência
Para estes mares para esta vida!
Me dê paciência para que eu não caia
Pra que eu não pare nesta existência
Tão mal cumprida tão mais comprida
Do que a restinga de Marambaia!...

1926

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(Esse abaixo ofereço ao meu amigo Sérgio Gouveia, de Prudente)

ANDORINHA

Andorinha lá fora está dizendo:
- "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...

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(Este poema Profundamente é de uma profundidade...)

PROFUNDAMENTE

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente

*

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

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O ÚLTIMO POEMA

Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples 
      [e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem 
      [os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

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É um livro fabuloso. Quanto mais leio, mais sinto prazer em relê-lo. Sempre há um poema que serve para um tema atual. É completamente atemporal!

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