terça-feira, 26 de março de 2024

Leitura (I): Fundamentos, regulação e desafios da Saúde Supl. no Brasil - Sandro L. Alves



Refeição Cultural

Leitura de livros - anotações e comentários


A leitura do livro Fundamentos, regulação e desafios da Saúde Suplementar no Brasil, de Sandro Leal Alves, lançado em 2015, foi motivada pela necessidade de me atualizar no tema já que havia sido convidado a participar de um planejamento estratégico de uma operadora de saúde na modalidade de autogestão e eu seria uma das pessoas responsáveis por compartilhar a experiência em gestão de uma das maiores operadoras de autogestão em saúde no país, a Cassi dos funcionários do Banco do Brasil.

O convite para compartilhar a experiência e os conhecimentos que adquiri ao ter sido gestor eleito de saúde da Cassi foi feito pela Unafisco Saúde, a autogestão do Sindifisco Nacional, Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil. Fui contatado pelo Diretor de Plano de Saúde do Sindifisco Nacional, Adriano Lima Correa, e prontamente me coloquei à disposição para compartilhar o que sei sobre o tema. Desde já, agradeço ao Adriano e ao Isac Falcão, presidente do Sindifisco Nacional, o convite, a acolhida e a troca de experiências que tivemos durante o evento da Unifisco Saúde. Desejo sucesso no alcance dos objetivos traçados no planejamento.

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ANOTAÇÕES E COMENTÁRIOS

O livro de Sandro Leal Alves é muito bem escrito, o que facilita bastante a leitura de um livro técnico. E os conceitos sobre o setor de saúde suplementar estão bem explicados.

Eu tenho divergência à forma como o direito humano à saúde é tratado no livro, mas compreendo como os liberais tratam a questão. No capitalismo tudo é mercadoria e a saúde não seria diferente. Aproveitemos, então, os ensinamentos técnicos do livro, e façamos o debate de ideias sobre as diversas formas de pensar o mundo.

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MUTUALISMO

Gostei da explicação que o autor dá sobre o tema mutualismo. Vejamos:

"O mutualismo foi o termo pinçado da biologia pela literatura securitária para definir a cooperação entre indivíduos mediante a agregação de seus riscos. Na Biologia, quando a interação entre duas espécies proporciona ganhos recíprocos decorrentes da associação entre elas, há mutualismo." (p. 42)

Em seguida, Sandro traz o conceito para a área da seguridade:

"O seguro fornece, nestes termos, uma possibilidade mutuamente benéfica ao reduzir o custo do risco para os segurados que se dispõem a contribuir para um fundo comum em troca da garantia de acesso a estes recursos na eventual ocorrência de infortúnios individuais. Se a troca é voluntária, como ensinam os manuais de Economia, a realização do comércio é um jogo de soma positiva em que todos os agentes envolvidos ganham, melhorando sua situação. O seguro contribuiu para a alocação dos riscos da sociedade permitindo que um agente avesso ao risco consiga transferi-lo, mediante o pagamento de um prêmio de risco, para um agente comprador de riscos que é a seguradora." (p. 42)

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PLANO DE SAÚDE É SEGURO

Achei interessante essa explicação sucinta da questão. O autor esclarece que as regulações são diferentes, mas que as regras estatísticas e atuariais são as mesmas. Eu tenho pontos de observação sobre isso, quando penso o modelo assistencial da Cassi, mas depois comento a respeito.

Vou citar a frase inteira para comentar o que penso em seguida:

"Uma primeira observação importante é notar que as regras estatísticas e atuariais que permitem a existência de um plano de saúde são as mesmas do seguro. O fato de terem regulações diferentes não muda um aspecto essencial de sua natureza: o risco. O elemento de agregação dos riscos é exatamente o mesmo, independentemente se o seguro é realizado para a proteção do patrimônio, de um automóvel ou de riscos associados ao adoecimento. A diferença aqui, evidentemente, é que no caso da saúde não se pode repor a saúde como se faz no caso de um bem, mas é possível oferecer indenização ou acesso aos serviços de saúde como forma de tratamento ou mitigação dos danos aos indivíduos.

O que se segura não é a saúde em si, pois não é possível, mas a diagnose e o tratamento, que frequentemente geram despesas médicas, laboratoriais e hospitalares que poderiam ser proibitivamente elevadas ou levar uma família a situações financeiras bastante desconfortáveis por pagamento direto." (p. 42/43)

COMENTÁRIO

Nesta explicação do autor, é possível apontar algumas leituras a partir de minha experiência ao conhecer o modelo de saúde que a Cassi vem tentando implantar desde a reforma estatutária de 1996. 

Por 5 décadas (1944 a 1995), a Caixa de Assistência dos Funcionários do BB teve uma lógica que se encaixava no conceito acima. Era um fundo mútuo de recursos para cobrir o acesso a serviços de saúde após a realização dos riscos comuns aos participantes do sistema.

Ou seja, o foco do uso do recurso daquele fundo mútuo era no reparo ou mitigação do dano realizado e não na prevenção ao dano.

E aí eu reforço que os custos nesta área, saúde, são impagáveis, e não só "desconfortáveis" por uma questão essencial do mercado capitalista: lucro máximo possível. Quem vende serviços de saúde visa lucro e a outra ponta, quem consome, deve estar precisando ou sendo convencida a precisar dos serviços... óbvio que a conta não fecha.

CASSI APÓS 1996

O objetivo pretendido pelos patrocinadores do fundo mútuo da Cassi a partir de 1996 (trabalhadores e BB) era outro, era utilizar de forma distinta os recursos financeiros da Caixa de Assistência, era passar a cuidar da saúde de seus assistidos ao longo de décadas, passando assim a usar melhor os mesmos recursos ao precisar ir ao mercado que visa lucro comprar serviços de saúde. Era outra lógica do uso dos recursos.

Para isso, após 5 anos de experimentos de modelos (1996-2001), a Cassi optou pela Estratégia de Saúde da Família (ESF), um tipo de Atenção Primária à Saúde (APS), com estruturas próprias de atendimento primário (CliniCassi), para organizar um sistema de saúde privado com mais controle no uso dos recursos e com bons resultados em prevenir doenças crônicas e seus agravamentos ao longo do tempo para aquela população assistida e fidelizada ao modelo.

Durante a nossa gestão (2014-2018), desenvolvemos estudos que comprovaram pela 1ª vez a eficiência do modelo ESF/CliniCassi na Caixa de Assistência, com estrutura própria - que faz toda a diferença - com profissionais assalariados em equipes de família e gestão em saúde e rede credenciada. Não eram "parceiros" do mercado que saem do projeto assim que recebem propostas melhores para ganharem mais em suas clínicas-empresas. Uma CliniCassi própria não visa lucro, uma CliniCassi "parceira" terceirizada visa lucro.

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RISCO MITIGADO - Ou seja, os riscos daquela população assistida por aquele recurso mútuo poderiam ser alterados, mitigados, ao longo do tempo. E nós provamos isso. Os estudos que fizemos demonstraram que uma parte da população vinculada ao modelo ESF tinha um uso melhor dos recursos do fundo após 3 anos ou mais de permanência no modelo de Estratégia de Saúde da Família (ESF)

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É POSSÍVEL EVITAR DOENÇAS (RISCOS)

Uma questão fundamental para diferenciar as explicações do autor nesta parte do livro e a experiência que ganhei ao estudar e gerir o modelo assistencial da Caixa de Assistência por 4 anos é que os estudos da estatística e dos cálculos de riscos trabalham com dados realizados e um modelo preventivo em saúde tem dificuldades em dar números a despesas evitadas, não realizadas.

O livro de Sandro cita Cechin e afirma:

"Como explica Cechin, 'contrair doenças é um evento futuro e imprevisível para cada indivíduo. Mas a incidência de doenças em uma população pode ser estatisticamente estimada com boa precisão para cada patologia. A estatística nos informa quantos, mas não poderá identificar quem'."

É e não é exatamente assim, na minha opinião. 

Tanto é que no final desse trecho do livro, escrevi um comentário por me lembrar de minhas divergências técnicas com os atuários e os setores na Cassi que só se debruçavam em números e pouca atenção davam ao modelo ESF na Caixa de Assistência. 

Eu insistia que a base de dados para os cálculos deveria ser melhor calibrada considerando a população que já era vinculada (fidelizada) ao modelo ESF porque o comportamento do risco dessa população e o uso do recurso do sistema eram diferentes da base de dados padrão que se baseava em parâmetros gerais de uma população que não estava em um sistema preventivo como a ESF.

A DIFERENÇA DA CASSI COM ESF EM RELAÇÃO AOS OUTROS

Esta afirmação abaixo - regra genérica - não se aplicaria à população Cassi vinculada (fidelizada) à Estratégia de Saúde da Família há mais de 3 anos.

"O plano de saúde ou o seguro saúde não evita que o segurado adoeça, mas se adoecer ele terá garantido o serviço de diagnóstico e recuperação ou será indenizado pelas despesas incorridas, conforme dispuser o contrato." (p. 44)

Aqui está a questão que o Dr. Vecina fala na reportagem da revista CartaCapital nº 1294, que citei no artigo que fiz a respeito do tema (ver aqui). Os planos e seguros de saúde vendem a promessa de redes credenciadas e não "saúde", esse e o ponto central. E eu reafirmo o que é claro para quem consegue ver: não há dinheiro que pague tudo o que o "mercado" ofereça porque o objetivo é lucro com a doença e não saúde.

Meu comentário final sobre essa parte dos fundamentos técnicos sobre mutualismo foi feito no livro após o box nº 2 (p. 45), que fala sobre "A lei de grandes números e a saúde suplementar". A essência do texto é para reafirmar os dados estatísticos sobre riscos de saúde realizados.

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"A lei dos grandes números só funciona se os eventos forem independentes, ou seja, se a chance de adoecimento de um indivíduo deve ser independente da chance de adoecimento dos demais. Por isso, as operadoras procurar "espalhar" os riscos. A operadora, com base na agregação de riscos e na Lei dos Grandes Números, pode ofertar planos de saúde a custo relativamente baixo. Quanto maior for a carteira segurada de riscos similares, maior será a estabilidade de resultados de eventos que uma operadora pode esperar e maior será a precisão do cálculo atuarial, ou seja, menor será o desvio em torno da média."
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Só que eu estou afirmando que se há um sistema onde os riscos são mitigados por anos a fio, em populações que ficam décadas no sistema, os dados genéricos exteriores a esse sistema não são a melhor base comparativa para se calcular riscos desse sistema preventivo e mitigador dos riscos que geram o uso dos recursos.

MEU COMENTÁRIO A RESPEITO: Pelos motivos apresentados no Box 2, que mostram que os cálculos e estatísticas são baseados na premissa de que a população do grupo vai adoecer conforme os dados existentes na sociedade é que eu, diretor de saúde da Cassi à época, afirmava que era possível precificar com valores menores a sustentabilidade do Plano de Associados e Cassi Família 2, cujas populações com maiores riscos fossem fidelizadas ao modelo ESF (e parte já estava cadastradas e vinculada ao modelo ESF como provamos), porque o adoecimento e uso dos recursos seriam menores do que os dados de mercado tradicional usados nas estatísticas.

Explico melhor: à época (entre 2015 e 2017), tínhamos um sistema com mais de 500 mil participantes, no qual 180 mil estavam cadastrados num modelo de saúde preventivo e que monitorava os assistidos e que atuava para melhor uso da rede, e dentro desses cadastrados perto de 50 mil já eram vinculados (fidelizados) demonstrando comportamento melhor do que os demais participantes do sistema. Essas informações não poderiam jamais serem desconsideradas nos cálculos atuariais da Cassi.

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CONCLUO ESSE PRIMEIRO COMENTÁRIO SOBRE A LEITURA DO LIVRO

Enfim, esses são alguns comentários a partir da leitura do livro sobre saúde suplementar.

Outros pontos podem vir em outras postagens sobre a leitura.

William Mendes


Bibliografia:

ALVES, Sandro Leal. Fundamentos, regulação e desafios da Saúde Suplementar no Brasil. Rio de Janeiro: Funenseg, 2015.


segunda-feira, 25 de março de 2024

Diário e reflexões



Refeição Cultural

Osasco, 25 de março de 2024. Segunda-feira.


As imagens e ideias que circulam pelos meus neurônios neste momento de escrita são tantas e tão diversas que fico com dificuldade de escolher temas para registrar nesta reflexão diária.


RACISMO

A entrevista do jovem jogador Vini Jr. falando para dezenas de jornalistas sobre o racismo que tem enfrentado na Espanha é uma das imagens que não saem da cabeça da gente. Que desgraça essa questão do racismo!

Só depois de muito tempo de vida adulta é que consegui pensar com um pouco mais de atenção o que deve ter sido a vida de minha irmã neste país violento e racista desde sua invasão. Nunca saberei o que ela passou e ainda enfrenta hoje por causa da cor de sua pele! Nunca saberei!

Quando estou andando pelo bairro onde moro, à mercê do poder discricionário de uma das polícias mais letais e violentas do país, e agora sob um governo fascista no Estado, eu não tenho como imaginar o que uma pessoa negra sente e ou sofre. Minha pele é branca. Só fui compreender essa verdade depois de me politizar. A maioria nem pensa a respeito do racismo. Isso é foda!

MARIELLE FRANCO

Foram mais de seis anos para avançarem as investigações sobre o assassinato brutal da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), ocorrido em 14 de março de 2018, quando seu carro foi metralhado no Rio de Janeiro. No atentado faleceu também Anderson Gomes e sobreviveu a assessora da vereadora.

Na minha leitura o crime não está solucionado. É a minha opinião. São muitas questões ainda sem explicações. A prisão dos irmãos Brazão e do delegado do caso à época, Rivaldo Barbosa, foi um passo importante. Não me surpreendeu saber que a principal autoridade de polícia estava envolvida. Isso é uma sociedade dominada pela milícia e a máfia. 

As investigações só avançaram porque o povo brasileiro elegeu Lula em 2022. Não tenho dúvidas sobre isso. Fosse a continuidade daquele regime miliciano que colocaram no poder central em 2018, nem teríamos solução para o assassinato de Marielle e nem teríamos direito de opinar a respeito, pois as coisas teriam piorado muito com o bolsonarismo no poder de todas as estruturas do Estado.

GENOCÍDIO DO POVO PALESTINO

"A índole e a escala do ataque israelense contra Gaza e as destrutivas condições de vida que desencadearam revelam uma tentativa de destruir os palestinos fisicamente como grupo", é o que afirma Francesca Albanese, a relatora das Nações Unidas sobre os direitos humanos. (site de CartaCapital, 25/3/24)

Na era da instantaneidade da vida, tudo filmado e imediato, o mundo assiste ao genocídio de um povo ao mesmo tempo em que ele ocorre. Os palestinos vinham sendo assassinados lentamente há muito tempo. O regime sionista do Estado de Israel ocupou as terras dos palestinos e passou a fazer com os colonizados o que se fazem com colonizados há séculos no mundo: inviabilizar a vida daquele povo. Até que os palestinos reagiram e agora estão sob ataque para que mais de dois milhões de pessoas deixem suas terras.

Até o momento, toda a estrutura física da Faixa de Gaza foi destruída após mais de 5 meses de bombardeios. É um exército contra um povo desarmado. Mais de 30.000 mortos, sendo a maioria de crianças, mulheres, idosos e civis. Se o governo de Israel obtiver êxito total na expulsão de 2.000.000 de palestinos de suas terras, o "case" pode ser a referência para os demais casos de potências ricas e com armas querendo ocupar terras e expulsar seres humanos de suas terras ancestrais.

CUBA BLOQUEADA HÁ DÉCADAS

Após ir a Cuba duas vezes e depois de me interessar mais pelo país socialista e a história extraordinária de luta de seu povo pela liberdade e autonomia em relação a qualquer país agressor, compreendo um pouco melhor o quanto é injusto o que Cuba sofre por causa do bloqueio criminoso e também genocida imposto pelo imperialismo norte-americano. Inviabilizar a vida de um povo é uma das formas de genocídio que se conhecem.

A hipocrisia que recheia a vida cotidiana dos seres humanos é algo que envenena diariamente corpo e mente das pessoas que têm um pouco mais de consciência e formação política. É duro passar o dia lendo, vendo, ouvindo merdas que pautam os nossos dias e a nossa agenda de vida! É duro! E o que são essas máquinas de produção em escala de mentiras e desinformações retransmitidas através das mídias (meios) dominadas pelas big techs? São vírus informacionais, vírus para minar a saúde da sociedade humana.

Por trás da Guerra com a Rússia, tendo a Ucrânia como bucha de canhão; por trás da Guerra de extermínio do povo palestino por parte do governo sionista de Netanyahu; por trás da miséria material imposta ao povo cubano há mais de seis décadas; por trás dos golpes de Estado no Brasil em 1964 e 2016... por trás dessas merdas todas estão sempre eles, sempre eles, aqueles que definiram de suas cabeças que o mundo é um quintal deles, que as Américas todas são para o bel-prazer e exploração deles...

Quanta hipocrisia e quanta ignorância temos que ver, ler, ouvir diariamente na sociedade humana! Viva os Estados Unidos e os idiotas que idolatram essa forma destrutiva de sociedade humana! Foi uma ironia... que se fodam eles e aqueles que idolatram eles!

SEM PERTENCIMENTO

Ainda não encontrei uma solução para me libertar do cárcere no qual estou acorrentado. A sensação psicológica é de agonia. Não consigo radicalizar uma solução porque não sou mais radical. Hoje sou cerebral. Isso te faz uma pessoa que calcula, que não age por instinto. Isso te faz conviver com a dor, com o incômodo. E te faz preservar portas cerradas, mas não inacessíveis para sempre. Ilusões.

Em alguns momentos, a coisa que queima por dentro, te faz pensar em voltar a ser como antes, e liberar todos os impulsos que o animal ferido tem. Já vivi meus tempos de fúria. Foram terríveis! Não gostaria de reviver aquilo.

Percebo, no entanto, que a coisa está me dilacerando. Algo precisa ser feito. Talvez devesse me desfiliar de todas as instituições que me vinculam ao passado que me traz dor. Sindicato, partido, associações. Talvez devesse ter coragem de me desfazer de tudo que me lembrasse minha história de décadas. Aí vem o cálculo e me põe na dúvida se isso é justo. E sigo no limbo.

Hoje, estou como o personagem Bill, do terceiro episódio da série The Last Of Us, que me inspirou no texto de ontem (ver aqui). Gostaria de viver num mundo onde pudesse ter vínculos com muito mais coisas que as relações pessoais com pessoas que amamos ou que precisam da gente. Gostaria de ter um motivo para seguir caso o acaso me tirasse os meus. Não vejo um mundo assim neste momento.

O meu liame com a vida são pessoas que amo. Que elas tenham vida longa!

William

(dias atrás, me senti útil naquilo que posso ser útil. Depois disso, me deu um vazio terrível... quase afoguei em meus oceanos internos)


domingo, 24 de março de 2024

O último de nós



Refeição Cultural

Osasco, 24 de março de 2024. Domingo.

Opinião


O ÚLTIMO DE NÓS

Duelam dentro de mim, dois sentimentos humanos: a esperança e o pessimismo. Os sentimentos podem nos levar a comportamentos e atitudes humanas irracionais, já que somos animais movidos pelas paixões, apesar de nos classificarmos como animais racionais - de cálculos cerebrais - somos na prática o inverso, estamos o tempo todo agindo por instinto e por paixão e não por razão. Essa é uma das grandes contradições do animal humano.

O episódio três "Long, long time" da série The Last Of Us, série baseada no aclamado jogo de mesmo nome, me deixou mais pensativo do que já ando nesta fase atual de minha existência. Para onde caminha a humanidade? Até que ponto estamos engajados em evitar realmente o fim do mundo?

Neste momento da história humana, já não vivemos mais utopias - idealizações de sociedades justas e com cidadanias plenas a todos -, já fomos todos engolidos pelas agendas que normalizam as distopias - a vida será pior ou inviável para a maioria e foda-se isso.

Como disse o professor Belluzzo em artigo recente, vivemos num "Estado de mal-estar social", inverso do que se almejava após a 2ª Guerra Mundial.

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DETERMINISMO GERA INAÇÃO

Avalio que fui uma pessoa que se baseou nas ideias deterministas de mundo durante décadas, inclusive durante uma parte do período no qual já era dirigente da classe trabalhadora após os trinta anos de idade, pois a formação política e intelectual de um militante de esquerda não se dá da noite para o dia, e ela pode nem ocorrer caso não haja um processo formativo pessoal e coletivo naquela organização onde o militante está atuando. 

Não se politiza pessoas só com desejo ou com retóricas, se politiza pessoas com método, com processos formativos adequados. Se educa e politiza seres humanos com planejamento, com objetivos, estratégias e táticas ao longo do tempo.

Avalio que a ampla maioria das pessoas no mundo está inserida em bolhas de leitura determinista de mundo. E aí é mais fácil apertar o botão do foda-se do que pensar em como mudar a realidade e a tendência de futuro. (já que o mundo vai acabar mesmo, quero mais é aproveitar o tempo que resta com as minhas questões e prazeres pessoais)

Com uma leitura e comportamento deterministas de mundo, de fim de mundo (leitura escatológica), de naturalização da realidade construída por uma parte dos agentes humanos que estão no mundo, a profecia pode tornar-se realidade por absoluta inação das pessoas, aceitação da tendência atual sem realizar ações que mudem a tendência do momento que direciona a sociedade, a natureza, os seres humanos e seres vivos para o esgotamento e fim da condição da vida.

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ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

Talvez o livro de ficção mais representativo da sociedade humana dos últimos séculos seja o livro do escritor português José Saramago, Ensaio sobre a cegueira. É um dos livros que mais se encaixam como uma carta coringa em qualquer cenário que envolva a sociedade humana e seus absurdos não vistos e se vistos ignorados por todos os agentes envolvidos na questão.

A criação por nós animais humanos das atuais tecnologias de comunicação virtuais e instantâneas poderia nos colocar em outro patamar da história humana em termos de ampliação do conhecimento humano, salto evolutivo só alcançado milênios atrás quando inventamos a escrita, os símbolos linguísticos que passaram a permitir a transmissão de saberes individuais para as outras pessoas após a morte daqueles que acumulavam saberes e culturas.

A internet e as redes sociais poderiam dar esse salto ao conhecimento humano... mas foram capturadas por poucos humanos em um mundo dominado pela lógica do capitalismo e do imperialismo, formas de organização da sociedade humana onde as pessoas e as conquistas tecnológicas para a melhoria geral da vida da espécie foram transformadas em mercadorias e não importam mais os valores intrínsecos às coisas. A própria espécie humana virou uma coisa, uma mercadoria. 

E nos tornamos cegos, cegos que vendo não veem mais nada.

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SOLUÇÕES COLETIVAS SEM COLETIVOS?

Durante as etapas formativas em minha convivência com o movimento sindical bancário ouvia com frequência frases de efeito e com grandes conceitos vindas de meus representantes sindicais, pois fui trabalhador sindicalizado desde meus 19 anos e só fui virar dirigente eleito aos 33 anos de idade.

- As soluções são sempre coletivas; 

- A prática como critério da verdade; 

- A saída é sempre pela esquerda; 

- Vamos construir o consenso progressivo, evitando-se votar logo de cara; 

- Construir a unidade na diversidade...

A história deveria ser sempre uma referência para as gerações seguintes saberem as consequências das ideias e ações do passado e pensar novas ideias e ações para as novas realidades da sociedade humana. A história não se repete porque os contextos sempre são outros. É aquela ideia da pessoa no rio, nem a pessoa é a mesma quando volta ao rio, nem o rio é o mesmo... (Heráclito)

Será que vamos construir soluções coletivas no Brasil e no mundo no campo "progressista" como chamamos a esquerda com o fim da possibilidade de divergência de ideias e opiniões nos sindicatos, partidos e movimentos organizados da classe trabalhadora?

Sem a volta de fóruns formativos e politizadores como assembleias presenciais, reuniões com grupos divergentes e unidades de fato na esquerda com plataformas que unifiquem o campo da esquerda seremos insignificantes enquanto grupos contrários ao domínio capitalista que nos conduz para um fim de verdade das possibilidades de vida na terra.

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O MEIO É A MENSAGEM

"A expressão 'o meio é a mensagem' foi criada pelo filósofo canadense Marshall McLuhan. Tal expressão surgiu a partir do momento em que McLuhan se propôs a analisar e explicar os fenômenos dos meios de comunicação e sua relação com a sociedade.

McLuhan, em sua obra Os Meios de Comunicação como Extensão do Homem, preocupou-se em mostrar que o meio é um elemento importante da comunicação e não somente um canal de passagem ou um veículo de transmissão. Este foi o ponto que gerou maior controvérsia em sua obra, pois até então era comum se estudar o efeito do meio quanto ao conteúdo, sem que se atentasse para as diferenças evidenciadas por cada suporte midiático (jornal, rádio, televisão, cinema, etc.). Cada meio de difusão tem as suas características próprias, e por conseguinte, os seus efeitos específicos. Qualquer transformação do meio é mais determinante do que uma alteração no conteúdo. Para McLuhan, portanto, o mais importante não é o conteúdo da mensagem, mas o veículo através do qual a mensagem é transmitida, isto é, o meio, que independente da sua utilidade, afeta a sociedade de algum modo além da finalidade para a qual foi criado. Diante disso, McLuhan ressalta a ideia de que o conteúdo de um meio será sempre outro meio. Paulo Serra em seu livro Manual de Teoria da comunicação, exemplifica que, os que estão preocupados com o conteúdo da mensagem e com os seus “efeitos”, deixando de lado o próprio meio, fazem lembrar um médico que se preocupa com a “doença”, mas esquece do doente.
 (Fonte: Wikipedia. O sublinhado é meu)

As redes sociais e os algoritmos são as ferramentas utilizadas pelos donos dos meios (corporações donas das mídias) para conhecer primeiro bilhões de usuários e depois utilizar esse conhecimento para manipular o comportamento desses bilhões de usuários da internet e das redes sociais. Depois de umas duas décadas de experimentos feitos conosco, agora somos vítimas de um sistema de controle global do comportamento humano, pautando o cotidiano das sociedades de uma forma nunca imaginado pela espécie humana.

Ou seja, por que vocês acham que a China decidiu criar as suas próprias mídias (meios) para enfrentar a hegemonia das mídias das empresas sediadas nos Estados Unidos? Por que vocês acham que o império do norte quer acabar com o Tiktok em seu território? Os norte-americanos não querem que uma big tech de fora faça em seu mercado (e domínio geográfico) o que as big techs deles fazem com as pessoas do mundo inteiro.

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GOVERNO LULA MELHOROU OU PIOROU A VIDA DO POVO?

Falei dessa questão do meio ser a mensagem para lembrar aos amig@s leitores que sem lidarmos com essa questão de criarmos os nossos próprios meios (mídias) não temos chances de fazer eleitores brasileiros perceberem a melhora da vida no governo Lula... sem chances. 

Caminhamos para um domínio tão grande da mente das pessoas, do sentimento e do comportamento das pessoas, que se o governo Lula entregar uma Suécia para os brasileiros eles vão achar que vivem no Haiti porque é assim que funcionam os seres humanos! A forma como sentimos o mundo é a forma como nossa mente percebe a realidade, ou cria a realidade!

Os dados da realidade econômica e social dos 15 meses de governo Lula demonstram melhoras na vida material do povo brasileiro. No entanto, a cada dia que passa, dominado pelos meios que influenciam comportamentos, pode ser que mais pessoas avaliem que a "vida" piorou. Uma das formas de pós-verdade!

Os meios por onde elas sentem o mundo são pessoais - as informações chegam só para elas em seus aparelhos - e essa informações (desinformações) se somam às desinformações abertas, as da mídia da casa-grande e do capital, que já conhecíamos e que transformam pessoas em monstros também...

"Uma imprensa cínica, mercenária, demagógica vai formar, com o tempo, leitores tão baixos quanto ela própria" (Pulitzer)

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RESPOSTAS DEVEM SER COLETIVAS DE FATO, SEM VETOS AOS DIVERGENTES

Minha reflexão já ficou longa para o domingo, mas venho falando e escrevendo sobre isso com frequência em meus textos.

Para onde caminha a humanidade? Até que ponto estamos engajados em evitar realmente o fim do mundo? O capitalismo e os caras no controle do capitalismo não estão nem um pouco preocupados em evitar o fim do mundo ou alterar a tendência disso.

Eu não tenho respostas para essas questões. Nem o presidente Lula tem. Nem Noam Chomsky tem. Quero dizer que as respostas não serão desenvolvidas da cabeça de uma pessoa. Mas podem fluir da cabeça de diversas pessoas que se preocupem com isso.

Sem ser determinista, basta abrir os olhos e ver, e vendo, perceber que se não alterarmos rapidamente a tendência das coisas na sociedade humana, caminhamos para a destruição das possibilidades de uma vida melhor no único planeta habitável para as mais diversas espécies de vida que conhecemos hoje no mundo, inclusive a da nossa espécie.

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TEMOS QUE CONSTRUIR UM MUNDO QUE FAÇA A VIDA VALER A PENA

Fico pensando naquele mundo do The Last Of Us, um cenário já não propício à vida em paz pelo ser humano e outras espécies, e fico pensando em Bill e Frank do 3º episódio da série, ou mesmo em Joel e Ellie, e não gostaria que a vida só valesse a pena enquanto temos uma ou algumas pessoas de nossa relação para querermos cuidar e viver.

A sociedade humana precisa ser boa o suficiente para que eu queira continuar vivendo mesmo que morram as pessoas de minha relação de amor mais próxima. Entendem isso? 

Está claro que esta ideia de mundo bom não é a sociedade hegemonizada pelo capitalismo, onde tudo é mercadoria e tem preço e na qual nem os seres humanos valem a graça da vida humana.

Se a motivação da vida humana for só uma ou algumas pessoas próximas e não as possibilidades amplas do viver - cultura, arte, beleza, conhecimento, solidariedade, um novo amor e amizade etc -, nossa sociedade estará no fim e realmente o mundo será esse cenário apocalíptico das ficções de terror que inventamos desde os primórdios.

William


sexta-feira, 22 de março de 2024

Esquerda e Direita - Por Alexandre Lemos



Refeição Cultural

Apresentação do texto:

Dias atrás, numa série de postagens que venho fazendo em redes sociais por causa da minha frustração pessoal ao ver o veto presidencial à memória dos 60 anos do golpe de Estado de 31 de março de 1964, postei um texto da jornalista Milly Lacombe sobre o tema - "Lula prova que a esquerda está morta (20/3/24)" - e fiz uma brincadeira perguntando quem ou o que seria de esquerda na atualidade. Ainda prometi um picolé de limão para quem me ajudasse a entender o mistério.

Num tempo relativamente curto, a companheira Ana Paula, amiga de longa data - militamos juntos no movimento sindical bancário - postou um texto que me encantou na hora. Adorei a simplicidade e a capacidade de síntese de ideias e conceitos complexos abordados no texto apresentado. Me lembrei na hora dos debates filosóficos que fazíamos aos finais dos dias de trabalho e em eventos nos quais nos reuníamos. Aquele período de militância sindical foi de grande aprendizagem na minha vida.

Ana me disse que o texto era do companheiro dela, Alexandre Lemos, e eu perguntei se poderia publicar aqui no blog. Vale a pena a leitura! É daqueles textos que voltarei a ele quando estiver refletindo sobre essa tão complexa e contraditória temática do que é e não é ser de esquerda.

Quando estava me formando politicamente no período de representação sindical lia muitos textos a respeito, muitos. Sigo lendo, até porque somos seres incompletos como li recentemente no livro Pedagogia da autonomia, do mestre Paulo Freire, e a cada dia vou tentando diminuir minha incompletude.

Vamos ao texto sobre ser de esquerda (e de direita), vocês vão se surpreender com a clareza do autor.

William Mendes

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ESQUERDA E DIREITA

Por: Alexandre Lemos

Perdi a conta do quanto já ouvi que esquerda e direita são conceitos antiquados.

Vou tentar palpitar sobre o tema, ainda que saiba que são grandes as chances de não servir pra muita coisa. Vou deixar pros enxugadores de gelo a perda de tempo em explicar a origem das definições. O que interessa agora é o que elas significam nos tempos em estamos vivendo.

Ser de esquerda significa compreender a história como um processo dialético que se encaminha para a emancipação do ser humano com a retomada do controle do produto de seu trabalho, ou seja, da produção de riqueza. Assim, luta-se para que se chegue logo a esse momento e se reduza a extensão no tempo e no espaço da exploração do trabalho pelas classes dominantes.

A emancipação das massas trabalhadoras só pode se dar pela socialização da posse dos meios de produção. Tudo o que produz riqueza deve ser propriedade de quem trabalha nesta produção. Terras, fábricas, serviços, tudo o que produz riqueza deve ser compartilhado por todos, partindo do princípio em que numa sociedade assim ninguém é patrão, ninguém vive de renda, ninguém expropria o trabalho de ninguém e todos trabalham.

A partir daí fica fácil compreender que, basicamente, são de esquerda os comunistas e os anarquistas. E é só. Claro que outros tipos de movimentos sociais já surgiram com o pleito da propriedade coletiva em contraponto à lógica burguesa de produção e consumo. Os hippies foram, ou talvez ainda sejam, um bom exemplo disso. Acontece, porém, que o movimento hippie nunca conseguiu ir além da perspectiva comunitária, não oferecendo, portanto, uma alternativa concreta que solucione a complexidade que uma economia precisa ter para manter vivos e saudáveis 7 bilhões de seres humanos.

Dentro da esquerda, por assim dizer, não há um só modo de pensar ou lutar pela emancipação que se almeja. Numa metáfora que era moda nos meus tempos de movimento estudantil, há nuances e matizes diversos que diferenciam comunistas e anarquistas e, além disso, produzem distinções dentro do comunismo e dentro do anarquismo. Pra exemplificar, cito uma diferença bem conhecida dentro do comunismo: os reformistas, que acreditam na emancipação através de sucessivas modificações do modo de produção até que se chegue ao comunismo, e os revolucionários, que propõe a derrubada violenta do capitalismo.

Do outro lado, a direita também se divide em diversas tendências. Dos fascistas aos progressistas, há muita diferença nas práticas e nos conceitos. O que os une? Todos acreditam que é certo e justo que os meios de produção de riqueza sejam propriedade privada. O que varia entre eles? O que eles chamam de certo e de justo.

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Se você acredita que é possível ser um bom patrão, um patrão justo que pague bem a seus funcionários e lhes dê boas condições de trabalho, se você acredita nisso então você não é de esquerda. A seu favor poderá se dizer, por exemplo, que você está à esquerda dos neoliberais ou dos fascistas, mas estar à esquerda de alguém não significa, necessariamente, ser de esquerda.
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Isso se explica a partir da compreensão de que justiça social não se resume a uma boa casa ou um bom salário. Claro que num país como o nosso, esses direitos são tão raros que se fazem urgentes. Mas é importante entender que o trabalho alienado, ou seja, o trabalho vendido ao dono da terra ou da fábrica, pode até garantir o sustento “digno” de uma pessoa, mas a levará obrigatoriamente a uma vida esvaziada de sentido e perspectiva, cuja única fonte possível de “satisfação” se concentra no consumo e na alienação cotidiana da própria realidade, serviço pra lá de bem-feito pelas redes sociais e pelos veículos de comunicação de massa.

Quem é da classe média, num simples exame da própria vida, percebe de qual vazio estou falando. Não é à toa que vivemos a era das drogas lícitas, criadas e prescritas pra que todos sigam produzindo e consumindo regularmente, sem grandes reclamações. Sob o reinado do Rivotril e seus congêneres, fica evidente que uma boa casa ou bom salário não bastam pra quem vive dominado e controlado pelo capital.

Por isso o Ciro Gomes não é de esquerda, mesmo estando à esquerda do Paulo Guedes. Por isso o FHC não é de esquerda, mesmo que seu neoliberalismo seja muito mais flexível que o do presidente fascista quando se trata de costumes e comportamento. Por isso o desenvolvimentismo é, quase sempre, um projeto de direita, ainda que implementado pelo PT.

A maior parte dos movimentos ambientalistas é de direita, mesmo quando assume posições críticas a certas práticas do capitalismo. Nem todos os militantes de pauta ligada às questões de gênero são de esquerda.

A História segue seu caminho.

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quinta-feira, 21 de março de 2024

A cultura da impunidade dos poderosos



Refeição Cultural

Osasco, 21 de março de 2024. Quinta-feira.


OPINIÃO

Em 2019, comprei uma revista sobre bilionários brasileiros para dar uma olhada no conteúdo daquela coisa asquerosa. Senti nojo até para pôr a mão naquilo porque o que sinto sobre essa pequena parcela de animais humanos que desgraçam o mundo vem desde a minha infância. Não era politizado, mas sentia que tudo que havia de mal na sociedade humana tinha o dedo dessa gente por trás.

Era o primeiro ano do regime de extrema-direita do amante de torturadores no Brasil. Alguns meses depois da publicação da revista viria a maior pandemia que a humanidade enfrentou em um século de pandemias: a Covid-19. Milhões de pessoas morreram e o mundo parou por um tempo. 

Foram tempos difíceis para a imensa maioria do povo brasileiro. Tivemos uma conjugação histórica desfavorável durante a pandemia que matou oficialmente 700.000 pessoas: o regime negacionista e corrupto no poder e um grupo de apoiadores dessa gente bilionária que usou o regime extremista para acelerar seus ganhos e aumentar seu patrimônio às custas da desgraça de toda uma nação. Foi um azar danado o nosso!

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IMPUNIDADE: NÃO PEGA NADA PARA OS RICOS

Nesta semana, as mulheres e os homens que comemoravam a condenação de um ex-jogador de futebol à prisão por estupro na Espanha receberam a notícia que colocou "ordem na casa" e devolveu à realidade como o mundo humano está organizado sob a hegemonia do dinheiro e do capitalismo: o sujeito já conseguiu a liberdade ao custo de mais um milhão de euros, pagos por um "parça" segundo informa a mídia. A pena já havia sido reduzida por mais um montante de dinheiro pago pelo mesmo parça.*

Para os ricos não pega nada!

Os inúmeros golpes de Estado no Brasil sempre tiveram os caras do dinheiro por trás, desde o primeiro golpe que pôs fim ao reinado de D. Pedro II por causa do prejuízo que os proprietários tiveram com a Lei Áurea, que "libertou" milhões de pessoas negras escravizadas após sequestro no continente africano. De lá adiante, sempre golpes de Estado tiveram o apoio político e os recursos dos milionários por trás, agora "bilionários".

Da minha geração até hoje, o que sei e vivi foi que nasci sob o domínio do AI.5 (1968), da ditadura implantada com o golpe de Estado de 31 de março de 1964. Depois vi a Rede Globo e a mídia dos ricos esconderem as "Diretas Já" enquanto deu e disfarçarem que apoiavam a volta da democracia. Vi manipularem debates entre Collor e Lula em favor do "caçador de marajás". 

Fui vendo as merdas em favor dos ricos ao longo da vida: a compra da reeleição para beneficiar o próprio presidente em mandato (FHC). Vi a tentativa de derrubar Lula já nos primeiros anos de mandato com a invenção do "mensalão" (hoje sabido como sendo uma operação lesa-pátria). Vi o golpe de Estado contra uma presidenta honesta, "com o Supremo com tudo". A prisão de Lula para colocar no poder a máfia em 2018. Vi muita merda ao longo de uma vida adulta no Brasil.

Eu era criança nos anos setenta e oitenta. Meus pais eram da classe trabalhadora explorada que tentava sobreviver naquelas décadas. No início dos anos oitenta, passei a odiar qualquer rico que via pela frente nas mansões onde batia para pedir para lavar o carro deles, ou nas casas enormes onde trabalhava de ajudante de encanador, ou ainda os que via na televisão esnobando aquele luxo todo.

Vejo a cultura da impunidade dos poderosos há décadas...

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BILIONÁRIOS AUMENTAM NO BRASIL... (QUE MERDA!)

Dei uma folheada na revista de 2019, vi as propagandas de carros caríssimos, iates, jatos, joias com belas mulheres, artigos ridículos, reportagens anunciando a provável derrota de Macri na Argentina e a matéria principal anunciando que o Brasil ganhava mais 26 bilionários naquele ano, agora somando 206 pessoas donas de quase tudo no país.

O mais novo incluído na lista de bilionários era o empresário mais próximo do regime de extrema-direita que governava o país, o sujeito que andava como um papagaio de verde e amarelo. A revista era só elogios, nem uma palavra sobre os processos e os problemas que ele teve por décadas com os governos por não pagar os impostos, nem uma linha.

Outros bilionários citados seriam protagonistas um tempinho depois de uma operação contábil de fraude bilionária que afetaria uma das maiores redes de lojas do país, causando milhares de demissões e desemprego de muitas famílias brasileiras... sem problema! Os caras seguem frequentando os fancy restaurants com gente em volta paparicando eles.

Para os ricos não pega nada!

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31/3/64 - 60 ANOS DO GOLPE

GOVERNO DECRETA SILÊNCIO A FAVOR DA IMPUNIDADE DAQUELES QUE DESGRAÇARAM O PAÍS E OS BRASILEIROS

Para finalizar as reflexões sobre a cultura da impunidade dos poderosos, fico olhando a revista dos caras que são inimputáveis, os caras que podem tudo, que nada pega contra eles, os caras que destroem a natureza, que ficam com mais da metade do PIB do país sem produzirem nada, dos caras que não pagam impostos e tributos, os caras causadores da miséria de milhões de pessoas, os caras que tiram sarro da nossa cara todos os dias... fico olhando a revista e pensando na tal conciliação de classes.

Passei as últimas décadas estudando - sempre que possível - sobre a política brasileira, nossa história, os movimentos organizados e as lutas da classe trabalhadora. Ao me tornar representante eleito de uma importante categoria profissional no início dos anos dois mil, estudei a história do Novo Sindicalismo, da criação do PT e da CUT e com o tempo fui entendendo melhor quem eu era como dirigente sindical daquele movimento.

Lula sempre foi um grande político, um líder extraordinário, um homem sábio. Ao longo das últimas seis décadas as causas populares tiveram Lula como um dos protagonistas à frente de todas as lutas por um mundo do trabalho mais justo e um país mais democrático e solidário. Isso é inegável! 

Um tempo depois que passei a estudar o movimento ao qual pertencia, entendi o que era a corrente política à qual eu militava, a Articulação Sindical. Então, afirmo que compreendo a maior parte de tudo que aconteceu em nosso campo nas últimas décadas. Nunca fomos revolucionários, sempre atuamos pela conciliação de classes.

POR QUÊ?

O que me intriga neste exato momento da história, o 3º mandato do presidente Lula, após nova tentativa de golpe de Estado há pouco mais de um ano, sabido por todo mundo até o mundo mineral, como diz Mino Carta, da participação dos militares no novo golpe, e da participação de muitos desses endinheirados de merda enaltecidos por revistas como essa que folheei, o que me intriga é por que Lula está indo contra todos nós do próprio campo político aceitando a imposição de silêncio sobre os 60 anos do golpe de 1964.

Alguns analistas políticos tentam achar alguma explicação em alguma estratégia de Lula para tamanha decisão contra o seu próprio lado, o das vítimas do golpe de 31 de março de 1964, e que evidentemente tem na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 os mesmos grupos que sempre organizam golpes no país. Por que diabos o nosso presidente está decretando silêncio absoluto do lado do Estado golpeado em 1964?

Eu tento entender como alguém que foi aculturado dentro de um movimento organizado que defende a conciliação de classes há décadas. Tento entender... mas não entendo! 

ACABARAM AS CONCILIAÇÕES DE CLASSE!

Não entendo porque desde o golpe contra a presidenta honesta Dilma Rousseff, desde a prisão por 580 dias do nosso estadista maior, prisão sem provas de crimes, desde as fraudes absurdas feitas para colocar no poder e manter aquela figura inominável na presidência da república de um dos maiores países do mundo, desde tudo isso, é sabido que a era da conciliação de classes acabou nesta nova fase do capitalismo global.

A conciliação de classes acabou! A nova fase é muito mais violenta, desumana e genocida que as fases anteriores desde o fim da 2ª Guerra Mundial e do mundo bipolar entre capitalismo e socialismo. 

Não há mais disfarces por parte dos donos do poder, esses caras agora não tergiversam em tomar decisões e mandar realizar ações que matam as pessoas do nosso lado da classe. Matam de fome, com balas e bombas, nos matam!

Eu gostaria de entender, mas ainda não consegui.

A nova fase do capitalismo e do dinheiro é a fase do cinismo e do sarcasmo de jogar na nossa cara que a cultura da impunidade dos poderosos é a que deve vigorar e quem não quiser que se lixe com isso...

E aí, vamos só nos lixar pra essa impunidade toda por aí!?

William

*Post Scriptum: ao final do dia da postagem, em busca de mais informações, soube que o jogador na Espanha, Daniel Alves, não havia pago a fiança dentro do horário definido para a soltura. E o pai de jogador famoso que deu dinheiro da primeira vez publicou em redes sociais informação dizendo que desta vez não iria dar o milhão de euros para soltar o amigo do filho. Vamos ver o que vai acontecer nos próximos dias. Na noite deste mesmo dia 21/3, no Brasil, foi preso o outro ex-jogador condenado por estupro na Itália, Robinho. Ambos jogadores foram da seleção brasileira de futebol.

terça-feira, 19 de março de 2024

Não podemos esquecer o 31 de março de 1964


Texto e ilustração publicados em RBA.

Refeição Cultural

Apresentação do texto "Papo cabeça no MSN", de José Roberto Torero.


Estamos nos aproximando do dia 31 de março e por incrível que pareça o nosso governo do campo democrático e popular, o governo do presidente Lula (PT), determinou que a data neste ano seja esquecida, que não seja um dia de reflexões e manifestações por marcar os 60 anos do golpe de Estado no Brasil. Avalio que esse seja um dos maiores equívocos de nosso querido líder e companheiro Lula em muitos anos de vida política. Avalio ainda que há tempo para que essa determinação errada seja corrigida.

O texto do escritor e jornalista José Roberto Torero é espetacular pelas características que traz em si. Nós usávamos o texto em curso de formação sindical. O texto foi publicado na Rede Brasil Atual, uma aposta que fizemos em veículos de comunicação alternativos às mídias dos donos do poder. Eu estava como dirigente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e região quando debatemos o projeto com outros sindicatos e políticos à época.

O que será de nós se realmente prevalecer a tese de que não se deve mais estudar o passado e aprender as coisas boas e ruins que fizemos ou que sofremos enquanto classe trabalhadora e povo explorado pelos poucos donos de todos os meios, os donos do poder? 

Vivemos numa nova era, a era das redes sociais e meios virtuais concentrados nas mãos de poucos humanos e suas corporações, a era do incentivo à ignorância por parte dos negacionistas e extremistas de direita, para facilitar o domínio das mentes e comportamentos dos animais humanos.

O bate-papo entre os dois jovens foi uma sacada incrível do escritor, antecipou muito do que iríamos vivenciar anos depois. É isso, vamos ao texto. 

Presidente Lula, é importante que haja um grande momento de reflexão nacional neste dia 31 de março de 2024. E que o povo brasileiro esteja preparado para que nunca mais ataquem a democracia e imponham ditaduras no Brasil.

A tentativa de novo golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023 quase nos jogou naquele período que alguns segmentos querem apagar ou reescrever, mentindo sobre a história. A começar por chamar de "revolução" o que sabemos ser um golpe patrocinado por traidores da pátria com apoio do imperialismo norte-americano.

William

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Papo cabeça na internet

Por: José Roberto Torero


Fê: E aí?
Dado: Firmeza. E aí?
Fê: Show de bola. Fez o homework?
Dado: Que homework?
Fê: O que a profe pediu.
Dado: Putz, caraca! A de história, né?
Fê: Só.
Dado: Que saco, esqueci! Qual que era a bagaça mesmo?
Fê: Espera que eu vou ver.


Dado: Achou?
Fê: Espera, pô! Ah, tá aqui: diga por que o dia 31 de março mudou a história do nosso país.
Dado: Tem ideia?
Fê: Nadica.
Dado: Então a gente se fala tipo daqui a pouco. Bj.
Fê: Bj.

(Meia hora depois.)

Fê: E aí, foi no Google?
Dado: Fui. E vc?
Fê: Total.
Dado: Matou a charada?
Fê: Matei.
Dado: Então fala aí, gata, por que o 31 de março mudou a história do nosso país?
Fê: Se liga: no dia 31 de março de 1889 a Torre Eiffel foi dedicada à cidade de Paris.
Dado: Bizarro. Mas o que isso tem a ver tipo com o Brasil?
Fê: Ah, sei lá! Antes não tinha a torre, entendeu? Aí os brasileiros não entravam numas de ir pra fora, conhecer o mundo. Fez a torre, aí abriu pra ir, visitar e os caras começaram a viajar. Por isso que tem tanto brazuca lá fora, tá ligado?
Dado: Louco.

Fê: Você achou algum treco?
Dado: Uma pá de coisa!
Fê: Fala uma.
Dado: Tipo, eu achei que nesse dia, em 1492, uns reis lá expulsaram os judeus da Espanha.
Fê: E aí? Onde que o Brasil entra nessa?
Dado: É que aí os judeus tiveram que ir pra Alemanha, o Hitler caiu em cima dos caras e eles vieram pra cá.
Fê: Pra Higienópolis?
Dado: Tudo a ver.

Fê: Sabe, cara, tô achando que pode ser outra coisa.
Dado: Tipo o quê?
Fê: É que eu também achei isso, ó: no dia 31 de março de 1900 saiu o primeiro anúncio de carro da história. Era uma firma da Filadélfia, meu, e eles publicaram o anúncio num jornal que chamava Saturday Evening Post. Vai ver é isso, porque aí os brasileiros acharam o anúncio o maior chique, começaram a comprar carro e acabou dando esses congestionamentos.

Dado: Sei não, nada a ver… Eu estou numa de que é uma coisa mais… sabe?, um troço mais zoado.
Fê: Mas, meu!, o quê?
Dado: Sei lá, um treco tipo guerra, entende?
Fê: Nadica.
Dado: Eu li num lugar aí que teve uma revolução aqui.
Fê: Aqui? No bairro? Xi, agora só vou sair na rua de capacete.
Dado: Pô, gata, é sério!
Fê: Rs, rs, rs, rs.

Dado: Olha só: parece que teve uma revolução mesmo, tipo um negócio com general.
Fê: Se liga, vc acha que teve guerra aqui?
Dado: Pô, de repente teve, sei lá…
Fê: Com esse negócio de espião, granada, metralhadora? Você pirou! Daqui a pouco vc vai dizer que torturaram neguinho no Brasil.
Dado: Pode ser. Que nem fizeram no Iraque. Eu vi no YouTube.
Fê: Ai, meu, sei lá… pra mim isso é viagem sua.

Dado: Pô, a gente fica com o que, então?
Fê: Paris, meu. Relaxa que é aquele lance da Torre Eiffel.
Dado: Tá bom, vou na sua. Me atacha a sua pesquisa que eu colo no arquivo.
Fê: Tá indo… Tá indo… Foi.
Dado: Valeu. Agora eu vou jogar umas duas horas de Mortal Annihilation.
Fê: E eu vou dar um rolê
no Shopping. Blz?
Dado: Blz.

Fonte: ilustração e texto da RBA (04/04/2013)

domingo, 17 de março de 2024

Cancelamento na esquerda é falta de solidariedade

 


Cancelamento na esquerda é falta de solidariedade de classe

Opinião

 

CENÁRIO DESAFIADOR PARA A CLASSE TRABALHADORA

As classes exploradas e despossuídas do mundo vivem um cenário pra lá de desafiador neste momento da história humana, século 21, ano de 2024. Ao invés de utopias, as tendências são distópicas (o futuro caminha para ser pior, não melhor). Desemprego de nosso lado, concentração de riqueza e poder maior ainda do lado dos ricos; carências de tudo no lado do povo: alimentação, saúde, educação, moradia, segurança, cultura. Destruição do planeta pelo capitalismo. Belluzzo escreveu nestes dias: caminhamos para um “Estado de mal-estar social”.

Além do drama da emergência climática, cujo efeito é parecido ao de bombas atômicas porque os países ricos e hegemônicos fazem as merdas e as consequências extrapolam os quintais, já que o efeito radioativo e os efeitos climáticos se sentem em todo o globo terrestre (pois felizmente ou infelizmente a Terra não é plana), temos o drama da mudança radical de comportamento humano, fruto do neoliberalismo e das ferramentas de manipulação das big techs: o que era uma utopia de liberdade e reencontros de amigos no início do século, internet e as redes sociais, viraram máquinas de divulgação de ódio e rupturas de amigos e familiares. Nos transformaram em animais baseados em instintos e paixões, ninguém tem mais tolerância nem ouvidos para opiniões diferentes.

Sobre as ferramentas que dominaram o mundo e nossas mentes e comportamentos, ainda temos pessoas que acham que vão vencer os algoritmos dos donos das big techs. Doce ilusão! (amarga ilusão, pois isso impede ações para combater os algoritmos desses poucos donos do poder mundial, poder que extrapola fronteiras de países inteiros: vide o Brexit, todo mundo se ferrou, menos meia dúzia de articuladores da manipulação do povo)

Enfim, após essa introdução de minha leitura do cenário desafiador para a classe trabalhadora mundial, para os 99%, em oposição ao 1%, que pra mim deveria ser identificado claramente como nossos inimigos no mundo humano, vou registrar o que penso sobre a ferramenta social da atualidade que podemos denominar “cancelamento”.

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TERÍAMOS AVANÇADO NOS DIREITOS DO POVO SE HOUVESSE CANCELAMENTOS COMO HOJE NA CONSTRUÇÃO DO NOVO SINDICALISMO?

É óbvio que gostaria de ir direto para o ponto sobre o que penso dessa ferramenta desumana de cancelar pessoas, mas para poder ao menos pensar a respeito olhando para trás, eu preciso me perguntar se haveria o Partido dos Trabalhadores (1980), a Central Única dos Trabalhadores (1983), o Movimento Nacional dos Trabalhadores Sem-Terra (1984), o movimento pelo fim da ditadura e pela volta da democracia “Diretas Já” (1985), e se haveria os militantes de esquerda porretas que contribuíram decisivamente na Constituinte para a Constituição Cidadã de 1988... acho difícil!

Fico pensando se teríamos uma Central com 17 (dezessete) correntes e forças políticas como a CUT chegou a ter na sua origem ou mesmo se teríamos criado a Articulação Sindical como a tendência hegemônica em congressos e fóruns democráticos, e com isso em diversos sindicatos de categorias importantes, caso o fenômeno do cancelamento e do banimento de qualquer voz dissonante fosse a regra naquele período...

Minha opinião: nunca! Até porque a estratégia da Articulação para se constituir como maioria no movimento sindical foi justamente juntar pessoas e grupos que já não estavam comprometidos com as correntes do chamado centralismo democrático: convergência socialista, os comunistas e outras forças políticas com longa trajetória de lutas no mundo.

Tenho a leitura racional que jamais teria passado a minha vida contribuindo para as lutas e conquistas da Articulação Sindical se não fosse a paciência da dirigente sindical Deise Lessa à época que me conheceu numa agência do Banco do Brasil. A ética sindical daquela geração dela ouvia e respeitava pessoas que pensam diferente! Não fosse essa ética daquela época da Articulação e do Novo Sindicalismo, eu teria ficado nos grupos que viviam me convidando para as reuniões que só falavam mal da diretoria do sindicato.

A prática de se buscar o consenso progressivo de todas as formas possíveis, antes de simplesmente contar votos e ter vitórias de Pirro no campo da classe trabalhadora, dividindo forças políticas o tempo todo, não resistiria a meia dúzia de cancelamentos à época, fazendo de conta que “esqueceram” de convidar fulano ou cicrana para um fórum importante.

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Na atualidade, não querem minha opinião sequer sobre uma das temáticas mais complexas do movimento sindical e que sei alguma coisa – gestão de autogestão em saúde – e outro dia, numa manifestação de rua, conversando com duas lideranças do meu sindicato de base, me perguntaram se eu havia gravado um vídeo sobre os 100 anos do Sindicato e ao dizer que ainda não, me disseram que eu iria ser contatado... pensei comigo no dia: doce ilusão! (provavelmente eu vá ser lembrado quando morrer... uma lembrança burocrática, talvez)

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A ESQUERDA NÃO DEVERIA ABRIR MÃO DE QUADROS COM HISTÓRIA E CONHECIMENTO POR CAUSA DE PICUINHAS DA BUROCRACIA

Após uma vida vivida dentro do movimento sindical bancário brasileiro, desde adulto jovem com 18 anos até os 50 anos de idade, a gente pode dizer que viu muita coisa no seio do movimento social de nosso país, de nossa classe trabalhadora. Modéstia à parte, eu vivenciei muitos momentos importantes e diria até decisivos para a nossa história, senão da classe, mas também, ao menos da categoria, e com certeza do segmento da categoria chamado bancários do Banco do Brasil.

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“Não tem que tolerar a religião dos outros, tem que respeitar” (Frei Betto)

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Antes de terminar esta reflexão, deixo claro algumas coisas:

É evidente que escrevo porque em mim dói alguma coisa também, mas falar sobre o tema cancelamento é uma necessidade inadiável no campo da esquerda. Faz tempo que essa “ferramenta” vem enfraquecendo e diluindo nossas frentes de esquerda nas lutas centrais contra o verdadeiro inimigo de nossa classe. Isso precisa parar, sem a recuperação da solidariedade e do fazer político verdadeiro, onde todas as pessoas e grupos sejam ouvidos e os debates ocorram com a tentativa de construção de unidade, as forças extremistas à direita, que são vozes ou ferramentas dos donos do poder (1%), e estão sendo organizadas de forma mundial, vão nos cancelar a todos, a todos.

Eu não sou e não quero ser candidato a mais nada, não quero representar ninguém, já valeram as duas décadas de representação desde a sindicância de condomínio até as representações sindicais no movimento dos bancários. Aliás, nunca me coloquei em disputas de candidaturas a nada, nunca, sempre que fui representante eleito de algum grupo é porque esses grupos debatiam e me convidavam, me procuravam para pedir que eu disponibilizasse meu nome para aquela causa (muitas delas com um sacrifício pessoal imenso).

Então, repito, escrevo sobre cancelamento porque tenho opinião e experiência de décadas na luta da esquerda, quero o bem de nosso povo, e afirmo que essa ferramenta vai inviabilizar nossas vitórias nas lutas de classe. Sozinhos ou de bolha em bolha de gente de ideias idênticas não vamos a lugar algum na luta de classes.

NÃO SE JOGA FORA CONHECIMENTO E EXPERIÊNCIA

O movimento organizado tem uma característica extraordinária de criar bons quadros políticos com conhecimentos de mundo formados no dia a dia das lutas. Os conhecimentos de um dirigente sindical, político, estudantil ou de outros movimentos específicos – identitários ou por moradia e pela terra pra plantar etc – são conhecimentos gerais e muitas vezes técnicos que não se adquirem nos estabelecimentos formais de educação.

Por isso acho um desserviço essa ferramenta do banimento, cancelamento, esquecimento, invisibilização e retirada do acesso de lideranças de qualquer movimento aos espaços de organização das próprias lutas em si. É uma prática pouco inteligente. E isso vem se ampliando exponencialmente ano após ano, e na última década a coisa chegou aos limites da insanidade.

Por décadas, li e estudei e tomei conhecimento do pensamento de lideranças e forças políticas diversas da minha porque os via falando, defendendo as ideias deles, porque tinham direito a escrever teses nos congressos, tinham espaço para falar nas assembleias, que eram presenciais. Agora é raro, cada dia mais impossível, ouvir alguém falar algo diferente do que a direção de determinado sindicato, grupo, movimento pensa. Pior ainda, dentro da mesma força política, se a pessoa perguntar ou questionar algo e a chefa ou chefe não gostar, adeus àquela vítima... ela será esquecida e nunca mais terá existido na face da Terra.

(e pensar que a referência negativa na Articulação Sindical era o chamado stalinismo, com aquele lugar-comum de até apagar fotos de lideranças que viraram desafetos etc)

Agora não se fazem mais teses, não se fazem mais assembleias e congressos presenciais (são raros), o que impera são as redes sociais das big techs, que permitem cancelar e bloquear ideias diferentes e invisibilizar vozes e pensamentos assim como as big techs fazem com as esquerdas mundo afora...

NÃO SE ACHAM MILITANTES DE ESQUERDA AOS MONTES POR AÍ (ENTÃO RESPEITEM OS QUE EXISTEM)

Às vezes, militantes são grandes especialistas em temas e questões que estudaram e foram acumulando conhecimento anos a fio, são o resultado das nossas lutas contra os verdadeiros inimigos de nossa classe, mas como têm opiniões fortes, muitas vezes não concordam com a proposta ou tese que o/a líder daquele espaço defende, e então são vetados, banidos de qualquer fórum que vá tratar daquele tema. Quem ganha com isso? O nosso lado da classe?

Digam se isso não acontece no seu espaço de militância hoje em dia.

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FALTA DE SOLIDARIEDADE E CUMPLICIDADE DAQUELAS PESSOAS QUE NÃO FAZEM NADA PARA QUE OS CANCELAMENTOS ACABEM NA ESQUERDA

Penso que não adianta ficar chorando o leite derramado, tivemos na última década muitas divisões em nossa classe trabalhadora, coincidentemente após aquelas manifestações de junho de 2013 - movimentações sabidas hoje que não foram “espontâneas” porque eram parte de um processo global de guerras híbridas.

Temos que retomar os diálogos, a paciência de ouvir, temos que respeitar as opiniões diferentes, e não “tolerar” como diz Frei Betto, temos que nos reunir em fóruns de nossa classe e construir consensos que evitem que as extremas-direitas, o movimento fascista global, nos derrotem, derrubem ou inviabilizem governos como o do presidente Lula.

Entendo que é uma obrigação ética ter mais solidariedade no campo da esquerda. Quantas lideranças forjadas em décadas de lutas estão por aí, apagadas, canceladas, invisibilizadas, por parte das direções dos movimentos sindicais, partidários, estudantis etc?

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Eu cobro responsabilidade de toda aquela e aquele que não se posiciona em seu espaço de poder e representação pelo fato dele/a saber que alguém está cancelado e não fazer nada a respeito. Quando eu fazia a fala inicial aos novos funcionários do BB explicava a eles que nunca achassem normal serem assediados, a violência organizacional, a humilhação etc. Não se pode achar “normal” apagarem da história uma militância e não se questionar internamente essa atitude... isso está errado na ética política da esquerda, que quer mudar o mundo hegemonizado pelo capitalismo e por seus agentes.

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A UNIDADE É A MELHOR CHANCE PARA A ESQUERDA

Eu me dirijo aos dirigentes bancários e militantes tanto da ativa quanto aposentados em relação à luta para que esses cancelamentos deixem de acontecer em suas bases sindicais.

Por que será que uma liderança local, que contribuiu de forma importante para a nossa história, nunca mais apareceu em debates e eventos de seus fóruns? Pode ser que ela tenha decidido descansar mesmo, nada mais justo, mas pode ser que ela nunca mais tenha sido convidada a contribuir com seus conhecimentos e experiências para os desafios atuais da direção do movimento por algum motivo pessoal de alguém ou até sem motivo. Isso é justo, é legítimo, é ético? Pensem a respeito.

Dias atrás, fui cobrado para me posicionar sobre a eleição da Cassi, autogestão em saúde dos funcionários do Banco do Brasil. É algo no mínimo inusitado. Desde as eleições de 2020, fui “esquecido” pelo meu sindicato de base na hora dos debates dos fóruns para se debater os temas. Isso se repetiu em 2022, esqueceram de mim na primeira semana de dezembro de 2021. E estamos com eleições em 2024. O que penso sobre isso?

Como ninguém quis ouvir o que eu pensava sobre o tema, e eu conheço alguma coisa sobre a Cassi e autogestões e modelo de saúde, e como eu teria contribuições a fazer, achei descabido me cobrarem posicionamento. Fui cancelado pelo meu sindicato, praticamente com foto apagada como aquelas da URSS, e entendi que o melhor seria seguir morto politicamente – CPF cancelado -, apesar de estar vivo civilmente e biologicamente.

Estive em um fórum de pessoas construindo conhecimentos sobre autogestão nesta semana e me pareceu que eu tive algo a contribuir, fiquei feliz e não fiz mais do que me exigiria a ética política de passar adiante o conhecimento que adquiri nas lutas da classe trabalhadora.

Sempre, sempre estive à disposição de todas as entidades sindicais, políticas, organizativas e outras para contribuir com o pouco que sei de alguns temas e assuntos que adquiri saber nas lutas diárias do movimento sindical. Sigo à disposição no que puder contribuir.

Quanto à eleição da nossa autogestão, eu tenho opinião, como ser politizado aprendi que é importante se posicionar, estudando o tema antes se necessário, e achei muito ruim o nosso campo da esquerda se dividir dando chances à chapa do outro campo. As bases sociais brasileiras estão muito polarizadas. Acho um risco. Espero que as forças mais à esquerda ganhem e que as chapas 2 e 55 não voltem para a gestão da nossa Caixa de Assistência.

Mas se realmente quisessem minha opinião, poderiam ter me chamado em qualquer fórum sindical que ajudei a fortalecer nas últimas décadas. Eu sigo à disposição do movimento sindical.

William Mendes


quarta-feira, 13 de março de 2024

Diário e reflexões



Refeição Cultural

Osasco, 13 de março de 2024. Quarta-feira.


Dias entre coisas amenas e coisas graves...


ESTUDOS SOBRE SAÚDE SUPLEMENTAR

Andei lendo nos últimos dias um livro técnico sobre saúde suplementar. Imagino que poucas pessoas leem um livro desse tipo, inclusive o segmento que trabalhe com saúde suplementar. A vida é muito corrida e provavelmente o tempo das pessoas que estão na fase de venda de suas forças de trabalho seja gasto na correria de fazer coisas automáticas do cotidiano, com pouco tempo para estudo e reflexão. E ainda tem a opção por ficar horas na internet nas horas nas quais as pessoas não estariam trabalhando...

O livro é muito bom na questão de conceitos técnicos sobre a área que descreve e o autor escreve bem. Como sou um homem de esquerda percebi o tempo todo o quão liberal é o autor, defensor incansável do livre mercado, do mercado que se regula sozinho e do quanto deve-se evitar que governos interfiram em mercados. O livro é sobre saúde suplementar e o autor acredita piamente que saúde é uma mercadoria. Tudo bem, isso faz parte da linha hegemônica da sociedade na qual vivo. 

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SAÚDE NÃO É MERCADORIA

Claro que discordo dessa leitura: saúde não é mercadoria. Mas não posso deixar de estudar e conhecer a realidade por causa disso.

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Não vou conseguir terminar a leitura antes de um bate-papo que fui convidado a fazer com gestores e operadores de uma autogestão em saúde nesta semana. Mas depois vou terminar o livro, só tenho a ganhar com a leitura, com a atualização de um conhecimento técnico que adquiri por representar um grande segmento de pessoas quando fui gestor de uma autogestão em saúde. Soma-se a esse conhecimento de sistemas de saúde o fato de eu ter estudado por um tempo áreas de saúde, o que ampliou minha visão sobre o tema.

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POLÍTICA NO BRASIL (CHEIRO DE IMPUNIDADE NO AR)

Vendo a movimentação do mundo da política, eu fico pensando com meus botões o que se poderia ler nas entrelinhas do que é dito e narrado pelos mais diversos segmentos da sociedade e mais diversificados meios de comunicação. O momento histórico da sociedade humana é hegemonizado pela pós-verdade, pela capacidade dos agentes de imporem suas narrativas sejam elas baseadas em fatos e evidências ou pura ficção, mentira, opinião - fake news e desinformação em massa.

Eu estudo um pouco de comunicação, política e história faz umas três décadas, pelo menos. Algumas coisas que a gente vai vendo se repetir ao longo da vida vão ficando chatas, previsíveis e nos fazem avaliar que certas coisas acontecidas não foram acasos, foram planejadas e esperadas pelos agentes envolvidos. A não prisão do genocida que ganhou de presente em 2018 a presidência da república de um dos maiores países do mundo me dá a impressão que é por algum motivo que não querem dizer: querem que ele fuja.

As desculpas são as mais diversas para se adiar a prisão do líder da tentativa de novo golpe de Estado ocorrida em 8 de janeiro de 2023 e permanente líder e incentivador de dissolução da frágil democracia brasileira, e as desculpas são defendidas pelos mais diversos segmentos à esquerda, centro e direita. O espectro político ao qual pertenço, a esquerda, está repleto de gente que acha que o criminoso deve ficar solto enquanto durarem as fases intermináveis de investigações e oitivas etc etc. Mesmo enquanto ele e seus "parsas" destroem provas e ameaçam prováveis testemunhas.

Eu tenho a impressão que não querem e não vão prender Bolsonaro. Estão com medo de prenderem o sujeito, é o que leio nas entrelinhas. Medo ou não querem, para contemporizar com a elite golpista.

Estão todos esperando e torcendo para que ele fuja, facilitando a vida dos segmentos políticos e sociais que não pertencem aos seculares círculos do poder real no Brasil - a casa-grande e o entorno comprado por ela nas estruturas do Estado - segmentos que preferem há séculos adiar o confronto armado e definitivo entre a elite canalha e a massa de gente explorada e miserável - afrodescendentes e os demais pobres excluídos dos direitos da cidadania. A esquerda, a intelectualidade progressista, as lideranças de movimentos sociais sabem que novos golpes virão, que a injustiça vai seguir aumentando contra a nossa gente fora do 1%, mas não querem organizar o confronto final entre nós e eles. E assim eles sempre darão novos golpes e novas tomadas de poder na marra. 

REVOLUÇÃO À DIREITA NO BRASIL

Eu tenho uma leitura que o regime liderado por Temer e Bolsonaro, por sete anos, realizou uma revolução, uma revolução conservadora e também reacionária, conservadora no sentido de manutenção absoluta do poder desses segmentos seculares de todas as estruturas do Estado nacional, públicas e privadas, e reacionária no sentido de desfazer as conquistas que haviam sido conquistadas pelas massas e classes subalternas em mais de um século de lutas em todas as áreas da cidadania. 

Bolsonaro, seja um imbecil ou não, um desqualificado ou não, liderou a revolução à direita que desfez nossos direitos políticos, econômicos e sociais e ele não fez nada do que fez "dentro das quatro linhas". Tudo foi na força, na imposição, de forma autoritária e o nosso lado ficou vendo, ameaçando reagir de forma insuficiente e burocrática e chorando pelos cantos.

É o que penso, sinceramente. Espero muito ser uma leitura exagerada e errada. Errar é humano. Ficarei muito feliz se tudo correr conforme deveria correr, os processos acontecerem, os direitos de defesa e as condenações desse criminoso e de sua corja de criminosos de longa data serem respeitados etc, e torço para ver a justiça prevalecer ao final como deveria acontecer com qualquer pessoa. 

NOSSA HISTÓRIA É DE IMPUNIDADE PARA A CASA-GRANDE

Mas a história da impunidade para essa gente da casa-grande fala mais alto no Brasil. 

Aqui só pretos e pobres vão presos e morrem diariamente em penas de morte decretadas pelos capitães do mato fardados, morrem nas mãos da justiça presos sem nunca serem sequer julgados, perdem direitos, vivem na merda... essa é a história da gente da nossa classe, da classe trabalhadora, a gente que tem cor - que tem que justificar a cor! -, gente que tem o alvo desenhado em si desde que nasceu.

Feito o registro de minhas impressões e reflexões do dia.

William


Post Scriptum: é engraçado, pra não dizer que é triste... nesta semana de eleições em uma entidade corporativa que conheço, tem três chapas concorrendo. Em duas delas, tem gente que praticou mentiras e fake news contra mim, e estão por aí livres leves e soltas. As forças políticas das três chapas já se beneficiaram de alguma forma de invenções criadas para assassinar minha honra e história. A política é assim. Não deveria ser, mas é assim.